Eppur si muove

(Conclusão da série de posts “INVENTÁRIOS)
O tempo pareceu parar para Beth, ali, na frente da porta, com a chave na fechadura. Por quantas e quantas vezes ela tinha repetido aquele mesmo gesto sem pensar no que estava fazendo? Nesse instante, hiato entre passado e futuro, os olhos do universo pareciam fixos naquela cena, naquela porta, naquele momento que nada mais era do que um elo numa infinita cadeia de eventos.
A vida inteira de Beth parece passar diante dos seus olhos, como em todos os clichês sobre os quais ela já ouvira falar. E, quem passasse por ali, efetivamente não saberia se a chave giraria no sentido horário ou anti-horário, se Beth estava fechando ou abrindo a porta. Se ela estava saindo ou chegando.
Embora aquele fosse apenas mais um elo na cadeia, Beth poderia se perguntar se ele já tinha um sentido pré-determinado, ou se ele ainda poderia ser mudado. Lembraria, então, de Ismael dizendo que é necessário sempre crer na dúvida e que todo o estado de indecisão é uma reafirmação da nossa liberdade.
Lembrar de Ismael vinha sendo difícil para Beth e a morte dele tinha enchido sua cabeça de questionamentos. Havia uma parcela muito boa e significativa de sua vida que tinha sido vivida ao lado dele. E Ismael era a única testemunha desses acontecimentos.
Beth sentia essa parte de sua vida se esvaindo. Se Ismael não estava mais ali, quem é que poderia lhe lembrar, lhe dizer que tudo aquilo havia sido verdade? Dar sentido a todas as coisas, guardá-las e compartilhá-las para sempre?
Quem diria a Beth o que ela sentira e quem ela era? Quem mais lhe garantiria que tudo tinha sido real e não apenas imaginação ou sonho? Beth tinha muito medo de esquecer e perder tudo isso e a única alternativa era a fragilidade de sua própria memória.
Havia ali sentimentos e idéias que Beth não sabia como exprimir. Ela lembrava das aulas de italiano e da dificuldade que tinha de dizer algumas coisas, dada a limitação de vocabulário. Fazia ajustes, analogias, aproximava. Mas, muitas vezes, a falta de conhecimento da língua limitava sua expressão.
Naquele momento, Beth sentia aquilo em relação à sua própria língua materna. Queria pensar, dizer muitas coisas, mas não havia palavras que permitissem até mesmo a organização dessas idéias. Havia coisas que ela não conseguia dizer nem para si mesma.
Alguns minutos antes de chegar ali, Beth imaginara quanta coisa poderia ter dito ou pensado, se tivesse palavras.
Talvez – imaginara Beth – eu não seria quem eu sou e, assim, jamais estaria aqui ou pensaria sobre isso. Lembrou do paradoxo do mentiroso, do qual Ismael sempre falava. Era a brincadeira do sujeito que afirma: - Eu sempre minto.
Assim, pensara Beth, fica provado que a atitude pode influenciar a essência, e o fim pode influir no começo. O futuro, então, não seria determinado, podendo ser mudado não só através do presente, como, também, do passado.
O tempo queimava por dentro de Beth e ela pedia que o fogo se acalmasse. Mas o fogo não abrandava. O fogo nada cria. O fogo só transforma. Porque o tempo que nos resta, pensara Beth, ainda não existe.
E Beth permanece ali. Contida. Imóvel. Cena estática. Uma fotografia. Um quadro. Por um instante, ela não se move, parada do lado de fora da porta. E o frio corpo de metal está dentro da fechadura. Os dedos dela seguram a chave.