Mostrando postagens com marcador Beth Fuoco. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Beth Fuoco. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 23 de setembro de 2008

INVENTÁRIOS 50


Eppur si muove



(Conclusão da série de posts “INVENTÁRIOS)


O tempo pareceu parar para Beth, ali, na frente da porta, com a chave na fechadura. Por quantas e quantas vezes ela tinha repetido aquele mesmo gesto sem pensar no que estava fazendo? Nesse instante, hiato entre passado e futuro, os olhos do universo pareciam fixos naquela cena, naquela porta, naquele momento que nada mais era do que um elo numa infinita cadeia de eventos.

A vida inteira de Beth parece passar diante dos seus olhos, como em todos os clichês sobre os quais ela já ouvira falar. E, quem passasse por ali, efetivamente não saberia se a chave giraria no sentido horário ou anti-horário, se Beth estava fechando ou abrindo a porta. Se ela estava saindo ou chegando.

Embora aquele fosse apenas mais um elo na cadeia, Beth poderia se perguntar se ele já tinha um sentido pré-determinado, ou se ele ainda poderia ser mudado. Lembraria, então, de Ismael dizendo que é necessário sempre crer na dúvida e que todo o estado de indecisão é uma reafirmação da nossa liberdade.

Lembrar de Ismael vinha sendo difícil para Beth e a morte dele tinha enchido sua cabeça de questionamentos. Havia uma parcela muito boa e significativa de sua vida que tinha sido vivida ao lado dele. E Ismael era a única testemunha desses acontecimentos.

Beth sentia essa parte de sua vida se esvaindo. Se Ismael não estava mais ali, quem é que poderia lhe lembrar, lhe dizer que tudo aquilo havia sido verdade? Dar sentido a todas as coisas, guardá-las e compartilhá-las para sempre?

Quem diria a Beth o que ela sentira e quem ela era? Quem mais lhe garantiria que tudo tinha sido real e não apenas imaginação ou sonho? Beth tinha muito medo de esquecer e perder tudo isso e a única alternativa era a fragilidade de sua própria memória.

Havia ali sentimentos e idéias que Beth não sabia como exprimir. Ela lembrava das aulas de italiano e da dificuldade que tinha de dizer algumas coisas, dada a limitação de vocabulário. Fazia ajustes, analogias, aproximava. Mas, muitas vezes, a falta de conhecimento da língua limitava sua expressão.

Naquele momento, Beth sentia aquilo em relação à sua própria língua materna. Queria pensar, dizer muitas coisas, mas não havia palavras que permitissem até mesmo a organização dessas idéias. Havia coisas que ela não conseguia dizer nem para si mesma.

Alguns minutos antes de chegar ali, Beth imaginara quanta coisa poderia ter dito ou pensado, se tivesse palavras.

Talvez – imaginara Beth – eu não seria quem eu sou e, assim, jamais estaria aqui ou pensaria sobre isso. Lembrou do paradoxo do mentiroso, do qual Ismael sempre falava. Era a brincadeira do sujeito que afirma: - Eu sempre minto.

Assim, pensara Beth, fica provado que a atitude pode influenciar a essência, e o fim pode influir no começo. O futuro, então, não seria determinado, podendo ser mudado não só através do presente, como, também, do passado.


O tempo queimava por dentro de Beth e ela pedia que o fogo se acalmasse. Mas o fogo não abrandava. O fogo nada cria. O fogo só transforma. Porque o tempo que nos resta, pensara Beth, ainda não existe.


E Beth permanece ali. Contida. Imóvel. Cena estática. Uma fotografia. Um quadro. Por um instante, ela não se move, parada do lado de fora da porta. E o frio corpo de metal está dentro da fechadura. Os dedos dela seguram a chave.


FIM/INÍCIO

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

INVENTÁRIOS 49


Schicksalswende



(Continuação da série de posts “INVENTÁRIOS”)

Quando Ismael morreu, Beth já tinha saído de casa há mais de três semanas. Tinha deixado quase tudo para trás. Não quis levar nada dos móveis, eletrodomésticos e, principalmente, dos objetos de decoração. Deixou CDs, livros, louça, panelas, roupa de cama e a coleção da revista Bravo.
Deixou os DVDs dos seus filmes favoritos, os bichinhos de pelúcia, os souvenirs de viagem, o MP3, a máquina fotográfica e as almofadas em forma de nuvem. Deixou também as raquetes de tênis, as cortinas que tinha comprado em Feira de Santana e a rede que trouxe de Fortaleza. Não tinha disco de Pixinguinha nem livro de Neruda, mas tinha duas dúzias de porta-retratos legais e a toalha de mesa que ela e Ismael compraram juntos para o Natal de 2006. Ficou tudo lá.
As malas, as cadeirinhas de praia, as canecas coloridas que enfeitavam a estante e com as quais Beth gostava de tomar chá nos dias de chuva. O travesseiro ortopédico, os óculos de natação, as gravuras que a Nanda fez, a foto autografada com Marcelo Camelo e os tíquetes de cinema que Beth gostava sempre de guardar.
Ficou tudo na casa quando Beth saiu e agora não tinha mais ninguém para cuidar disso. O que fazer? Pegar tudo e levar para casa? Dar todas as coisas para alguém? Deixar tudo fechado para que os pais de Samuel dessem um fim?
Enquanto caminhava na direção da casa, Beth pensava no que fazer. Levar tudo com ela, dizia baixinho, seria carregar de volta para sua vida um monte de coisas que não queria mais.
Era seu passado. Tudo bem. Mas já não era mais seu presente. E trazia lembranças demais. Dores demais. O que fazer com isso? Apagar as lembranças? Zerar o passado? Isso não seria limpar o que ela era?
Lembrou do filme “Eternal Sunshine of the Spotless Mind” e ficou preocupada.
Essa coisa de passado sempre era difícil de lidar para Beth. Ela lembrava da metáfora que a terapeuta uma vez usara. Ela dissera que o inconsciente era como o fundo do mar, que a gente mergulhava em sonhos e pensamentos e, de vez em quando, trazia as coisas lá do fundo para cima. Seres abissais monstruosos. Mas também valiosos tesouros. Lembranças, sonhos, devaneios, insights.
Às vezes, pensava Beth, quando acontecia algo muito forte, era, então, como uma tsunami. A onda vinha arrastando tudo, revolvendo tudo e levantando milhões de coisas do fundo do mar. Era mais ou menos o que estava acontecendo agora.
Pensando nisso, ela tirou o chaveiro da bolsa e colocou a chave na fechadura, ficando parada por um breve momento.

(No próximo post da série “INVENTÁRIOS”, o final da estória de Beth e Ismael)

sábado, 6 de setembro de 2008

INVENTÁRIOS 48



Exoesqueleto



(Continuação da série de posts “INVENTÁRIOS”)

Nos filmes, desenhos animados, livros, gibis e estórias infantis, Beth sempre achou na imagem da borboleta saindo do casulo a metáfora mais clara da transformação das pessoas. Sempre acreditou nessa situação de metamorfose libertadora, de mudança profunda e avassaladora da alma. Sempre esperou por um momento desses em sua vida. Mas ele nunca veio.
Ela tinha a esperança de que, de uma hora para a outra, mudassem as coisas dentro dela com as quais tinha dificuldade em lidar. Mas ela permanecia sempre a mesma em sua essência com apenas pequenas mudanças. Algumas coisas se atenuavam, outras se salientavam, mas ela continuava sendo a mesma e, fundamentalmente, lutava contra os mesmos problemas. Por mais que o tempo passasse e ela enfrentasse novas situações na vida.
Beth pensava em casulos apertados e na deliciosa sensação que seria finalmente sair dali e abrir as asas ao vento. Na sensação de liberdade, de superação, de evolução e leveza que essa imagem lhe trazia.
E a borboleta era também um ser de beleza reconhecida e admirada por todos. Todas as pessoas gostam de borboletas – pensava Beth – e, depois, ninguém mais lembra que elas, um dia, foram lagartas horríveis.
Certa vez, um amigo jogou para ela as cartas do Tarô. Uma imagem lhe chamou muito a atenção: a da carta do Enforcado. Era um homem amarrado pelo pé, de ponta cabeça. Permanecia imóvel, como quem é apanhado numa armadilha.
Segundo o amigo, era a imagem do sacrifício necessário para se alcançar algo maior. Um sacrifício de angústia e espera, de antecipação e imobilidade, de dor e escuridão, de solidão e desespero, de forca e cruz.
Mas também, segundo o amigo, um sacrifício de superação, o momento necessário que precede a morte e a transformação do ser, a noite escura da alma que antecede o amanhecer.
Por algumas semanas, aquela imagem não saiu da cabeça de Beth e no dia em que Ismael morreu, ela lembrou bastante de O Enforcado. Mas, no cemitério, enquanto todos acompanhavam a cerimônia do enterro, uma outra imagem chamou sua atenção. Era uma casca de besouro. Vazia. Seca. Sendo levada por algumas formigas.
Lembrou das aulas de biologia do segundo grau. Era o exoesqueleto. Tipo de esqueleto de alguns insetos, que fica na parte exterior, diferentemente do que acontece com os animais vertebrados.
É um sistema de proteção muito eficaz contra predadores, intempéries e outros perigos que ameaçam a vida dos pequenos insetos. Um sistema eficaz e praticamente perfeito que possui apenas um senão. Por ser rígido, ele é limitado. Assim, quando o inseto cresce, fica preso em sua própria carapaça, que o impede de se expandir. Então, aquele que foi o seu mais importante mecanismo de proteção, se torna um entrave.
A solução providenciada pela natureza é o abandono do exoesqueleto para que cresça um novo, maior e mais perfeito, e que permita ao inseto evoluir. Mas há um risco: o novo esqueleto, que cresce por baixo do outro, é flexível por ainda um tempo após a perda do antigo. Assim, por um espaço breve de tempo, o inseto fica totalmente vulnerável.
É uma escolha difícil para ele. Abandonar a casca antiga e poder crescer, arriscando-se ao abrir-se pra o mundo, ou ficar limitado e morrer espremido dentro da antiga. De um lado, a segurança e a estagnação, de outro, o risco da dor e a possibilidade de crescer.

Mas a natureza não deixa dúvidas. Os insetos sempre abandonam os exoesqueletos.

Para a alegria das formigas.

(Continua na série de posts “INVENTÁRIOS”)

domingo, 31 de agosto de 2008

INVENTÁRIOS 47


Paroxismo





(Continuação da série de posts "INVENTÁRIOS")

Na faculdade, Beth se apaixonou, certa época, por Freud. A visão fria e mecanicista do pai da psicanálise trazia para Beth um certo conforto em um mundo tão cheio de incertezas. Embora complexa e difícil de ser alcançada, a felicidade parecia algo matemático e possível na busca do equilíbrio de forças proposto por Freud.
- Pode demorar um tempão - pensava Beth - mas é possível. E se não der certo, pelo menos a gente sabe porque.
Na interprestação que Beth fazia das suas leituras de Freud, a infelicidade humana provinha de três fontes básicas.
A primeira, era porque o ser humano não consegue controlar a natureza ao seu redor, que é mais forte do que ele. E isso frusta seus desejos. E o frustra.
A segunda fonte seria o tempo cruel, que avança sem a menor possibilidade de ser detido. E o corpo humano decai, adoece e morre. E o ser humano sabe disso e nada pode fazer para controlar essa marcha.
E a terceira fonte seria a alteridade. A existência do outro como ser auto-consciente, individualizado e diferente. Um outro que não pode ser controlado, que nos contraria e decepciona.
Beth gostava dessa definição mas achava que faltava ainda uma fonte de infelicidade a ser citada. Para ela, a incapacidade de controlar a si mesmo seria a quarta e definitiva fonte de infelicidade do ser humano. E, na opinião dela, a maior fonte de frustração também.

(Continua na série de posts "INVENTÁRIOS")

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

INVENTÁRIOS 46


Igbó Ikú




(Continuação da série de posts “INVENTÁRIOS”)


Ismael sempre dizia que iria morrer no mar. Que seria doce, como nos versos de Dorival Caymmi. Mas ele adorava barcos e sempre sobreviveu ao mar. Um acidente de carro é que acabou levando Ismael.
Uma coisa boba. Um sinal que acaba de fechar e alguém tenta aproveitar o último segundo. E por causa de um único segundo, uma coincidência absurda, algo que não aconteceria um segundo antes ou um segundo depois, acaba acontecendo.
Teve velório, missa e enterro. Todas aquelas coisas que sempre tem. Aquelas coisas que Beth e Ismael sempre detestaram e diziam que jamais passariam por isso. Mas os pais de Ismael queriam e Beth não teve forças para discutir isso.
Depois do enterro, foi para casa. Queria parar de pensar em tudo. Resolveu ir para a internet, dar uma olhada nos perfis das comunidades virtuais de que participava. Começou com o Hi5. Achou que não tinha a ver com ela e apagou tudo.
Depois veio o Orkut, Facebook e finalmente o My Space. Apagou os fotos do Flickr e os vídeos do You Tube. Saiu do Del.icio.us, exterminou seu avatar no Second Life e deletou milhares de e-mails arquivados, endereços, contatos do MSN e Google Talk, músicas e textos.
Deletou cada uma dessas coisas como se fossem as lembranças de quem ela era é que causassem dor. Apagou tudo, devagarzinho. E sentiu algum alívio. Por pouco tempo.
Na verdade, Beth queria mesmo era se dissolver assim, se apagar, se diluir nos bilhões de bytes de informação da internet. Mas nem tudo pode ser deletado assim. Não dá para reestartar a máquina, nem reformatar o HD. O disco continua girando. Sem parar.

(Continua na série de posts “INVENTÁRIOS”)

sábado, 23 de agosto de 2008

INVENTÁRIOS 45


Supérstite


(Continuação da série de posts “INVENTÁRIOS)

A existência de Deus sempre foi uma coisa esquisita para Beth. Um conceito que nunca se encaixou na realidade dela, embora a mãe insistisse em levá-la à missa católica semanalmente quando ela era criança. Nessa época, para Beth, a palavra “deus” poderia ser substituída tranqüilamente por “culpa”.

A possibilidade de existir um ser superior a tudo, onisciente, onipresente, perfeito e, principalmente, amoroso, sempre foi difícil de conceber para Beth. Quando adolescente, ela se perguntava como a onisciência divina poderia se encaixar no conceito de livre arbítrio das pessoas.

– Se Deus sabe o que vai acontecer, como é que eu tenho o poder de decidir?

E se Deus ama tanto assim os seus filhos, por que tanto sofrimento? Por que a fome, a doença, o medo, o ódio, a guerra, os programas de televisão no domingo e tantas outras coisas terríveis nesse mundo?

A imagem que a maioria das religiões prega, na visão de Beth, é a coisa mais ridícula de tudo.

– Não posso acreditar num sujeito barbudo e de camisola olhando lá de cima pra tudo isso, interferindo aqui e ali, conforme o humor do dia.

- Fez coisa boa? Que bom, aí vai uma graça, um maná caindo do céu, a fortuna na mega sena, o sucesso de popstar, a Paralela vazia na hora do engarrafamento.

- Pecou? Pisou na bola? Aí vai dilúvio, sete pragas do Egito, Brasília, George W. Bush, spam e aula de ginástica aeróbica.

É como aquele game The Sims, pensava Beth, Deus cria, recria, acompanha, muda, faz e desfaz. E se ele não gostar de alguma coisa, lá vem tsunami, game over, desliga tudo, acabou a brincadeira. Afinal, o sr. Onipotente pode começar de novo quando quiser, não é?

- E agora, Ismael morreu. E se essa porra de Deus não existe, pra onde é que ele vai? Vira nada? Fica na solidão eterna? No silêncio total? Que merda de Deus onipotente é esse que não consegue nem fazer com que eu acredite nele. E agora, faz falta...

(Continua na série de posts “INVENTÁRIOS)

domingo, 3 de agosto de 2008

INVENTÁRIOS 44



Enantiodromia


(Continuação da série de posts “INVENTÁRIOS”)


Beth considerava Daniel uma figura. Um desses malucos beleza que fazem a gente rir o tempo todo com as idéias absurdas e o comportamento esquisito. Desde o primeiro ano de faculdade, Daniel se tornou um dos melhores amigos de Beth e os dois se divertiam muito juntos.
Em comum, os dois tinham o fato de terem o jeito meio “nerd” e a paixão pela internet. Aliás, Daniel respirava através da Web. Vivia conectado e navegando o tempo todo, aqui e ali, atrás de novidades.
Sua especialidade era teorias de conspiração. Sempre tinha uma estória nova, de organizações obscuras com planos mirabolantes para dominar o mundo, de crimes quase perfeitos que permaneciam insolúveis, de terríveis armadilhas que as grandes corporações criavam para prejudicar o incauto consumidor.
Beth gostava de ouvir as estórias e muitas vezes se empolgava junto com Daniel ao imaginar os esquemas secretos que estavam por trás de tudo. Os ataques de 11 de setembro, por exemplo, forneceram matéria-prima para Daniel por um bom tempo. Ele jurava que o próprio George W. Bush havia forjado os atentados para desviar os olhos do mundo da sua administração desastrosa.
- E ele ainda pode gastar uma fortuna em armas, que todo mundo vai achar normal.
- Não sei, não, Daniel.
- Mas é verdade, Beth. Você não viu o filme do Michael Moore.
- Eu vi, mas é uma idéia bem ousada.
- Acho que o Bush é o Anticristo. Ele tem um pacto com o diabo. Quer matar todo mundo.
- Hmmm. Essa estória me arrepia. Eu me lembro, quando era criança, da estória do quadro do menino chorando. Aquilo também me arrepiava.
- Ah, eu sei. É uma lenda urbana famosa. Quem tinha um quadro daqueles em casa, acabava perdendo alguém da família de forma violenta. Tudo porque o pintor tinha feito um acordo com o diabo.
- É. Uma coisa boba. Mas eu me arrepiava com essa estória.
- Os anos 80 tinham muitas lendas bacanas. Lembra do boneco do Fofão?
- É. Diziam que tinha uma faca dentro.
- Não. Era uma adaga.
- É, é verdade. E a boneca da Xuxa levantava de noite e matava as crianças.
- E os discos dela tinham mensagem satânicas gravadas ao contrário.
- Mas é verdade. Eu ouvi aquela música Doce Mel ao contrário e parece “sangue, sangue, sangue”.
- Tinha também a Caverna do Dragão, que nunca acabou. Dizem que é porque os garotos tavam é perdidos no inferno. Todos eles tavam mortos.
- Você é uma figura mesmo, Daniel. Você deve ter saído de um episódio de Lost.
- Ou Arquivo X.
- Mas acho que não se fazem mais teorias da conspiração como antes.
- Claro que fazem. Ontem mesmo eu recebi um e-mail de um amigo falando da teoria do spam da morte.
- Spam da morte?
- É, vem com uma mensagem cheia moralismo e a imagem de um anjo estranho. E, se você não passa adiante, quando seu nome chega ao fim da lista, você morre de causas estranhas.
- Ahahahaha. Essa é boa. O que os caras vão inventar mais?
- Na verdade, eu acho que o mundo inteiro é cheio de teorias da conspiração. O tempo todo a gente ta sendo manipulado.
- Você ta ficando paranóico.
- Não. É sério. Acho que mais do que a Nasa, a CIA, a Internet, a Globo, o Geoge Soros e Hollywood, tem uma conspiração mais forte do que todas e em que todos caem.
- E qual é?
- Deus.
- Deus?
- Isso. Deus. É a maior conspiração de todas. Acho que quase todo mundo cai nessa. Um dia ou outro na vida, todo mundo já acreditou em Deus, Buda, Jesus, Maomé, Moisés, Oxalá ou qualquer coisa assim.
- O ópio do povo?
- É. Mais ou menos. Acho que é a maior enganação que já existiu. Mas é tão bem orquestrado, que eles brigam entre si pra você ficar impressionado.
- E eles ainda mandam spams assassinos e bonecos do Fofão e discos da Xuxa pra matar você.
- É. É por aí. Mas você não acredita, né?
- No creo em bruxas, pero que las hay...
- Você acredita?
- Sei lá. É que acontece tanta coisa que a gente não explica. De certa forma, eu acredito. Acho que ia ser muito sem graça se não existe um algo mais. E eu não ia agüentar o vazio.
- Vazio?
- É, do mesmo jeito que você. Se não tivesse as suas teorias da conspiração, como é que você ia passar o tempo?
- É verdade. Deus é um passatempo.
- Como paciência spider.
- Você sabia que esses jogos de paciência de computador têm um dispositivo que lê as reações das pessoas e gera códigos hipnóticos que dão ordens, como, por exemplo, comprar coca-cola.
- Tá bom. Tá bom. Deixa pra lá.

(Continua na série de posts “INVENTÁRIOS”)


quinta-feira, 24 de julho de 2008

INVENTÁRIOS 43



Quequeg









(Continuação da série de posts “INVENTÁRIOS”)


- Homem Invisível? Ah não, isso não é possível – reagiu Beth.
- E por que não? – perguntou Ismael.
- Ninguém quer ser o Homem invisível quando é criança. Não é o super-herói favorito de ninguém.
- Pra mim, sempre foi.
- Por quê?
- Porque ele pode ficar invisível, porque ninguém vê ele quando ele não quer ser visto. Basta desaparecer e ninguém mais enche o saco. É por isso eu queria ser o Homem Invisível
- Hmmmm. E como você ia dar aula sendo invisível?
- Os alunos não precisam me ver. É só eles verem o quadro negro, a tela com o power point projetado e ouvir a minha voz.
- É um desejo estranho...
- Muito mais estranho é uma criança querer ser um super-herói com um malhinha apertada, voando por aí e sendo perfeito, tipo Super-homem.
- Uma época, eu queria ser a Mulher Maravilha, mas eu enjoei dela. Mais tarde, eu gostava mais dos heróis sombrios, como Batman, Wolverine e Sandman.
- Mas o Sandman não é super-herói.
- É sim. Até o do Neil Gaiman. Ele não salva o Mundo dos Sonhos e as criaturas dele?
- É, tem razão, então eu quero ser o Sandman, porque ele tem um elmo da invisibilidade e pode desaparecer quando quer.
- Não acredito. Você é fixado mesmo nessa coisa de invisibilidade.
- Eu não agüento essa vontade de aparecer das pessoas, de querer ser visto a todo custo, de colocar mil perfis em Orkut, MySpace, FaceBook e coisas assim. E as pessoas que se tornam famosas, então, fazem tudo pra aparecer pros paparazzi.
- Isso rende dinheiro. É marketing.
- Pra mim, aparecer só rende dor de cabeça.
- É uma coisa de ego também. As pessoas querem se sentir aprovadas, aceitas, amadas, desejadas.
- E pra isso, elas deixam de ser elas mesmas. E, no final, são amadas pelo que elas fingem que são, não pelo que são de verdade. O que dá no mesmo que não ser amado. Tá cheio de artistas nessa onda. Tipo Marilyn Monroe, que se mata porque sente que não é amada pelo que é, e sim pela imagem projetada.
- Mas não é bom que as pessoas te conheçam, que você encontre gente, converse, se sinta apreciado?
- Isso pode ser qualquer coisa. Prefiro ficar de longe, conhecer umas poucas pessoas que realmente gostem de mim como eu sou e é só. Gastar esforço pra que gente que eu não conheço goste de mim é muita perda de tempo e de energia.
- Mas assim você fica de fora de muita coisa.
- Eu sempre lembro do epílogo do livro Moby Dick, quando o navio Pequod afunda e morre o capitão Ahab e toda a tripulação, arrastados pela baleia furiosa. Ismael é o único que se salva, se agarrando num caixão que tava no barco e sai flutuando. Ele fez parte de tudo aquilo, ele viu, experimentou, acompanhou, mas não se envolveu a fundo. E saiu vivo. Pra contar a estória.
- Tá bom. Você venceu. Pode ser o Homem invisível. Mas não vá se queixar se eu pisar no teu pé ou der uma joelhada no saco. É que eu não tô te vendo.


(Continua na série de posts “INVENTÁRIOS”)

quarta-feira, 16 de julho de 2008

INVENTÁRIOS 42



Gibberish




(Continuação da série de posts "INVENTÁRIOS")

A morte sempre mexeu de um jeito estranho com Beth. Toda vez que recebia a notícia da morte de alguém, mesmo que fosse um mero conhecido, isso a abalava muito. Era uma sensação de que lhe tinham roubado algo, de que tinha sido enganada, ludibriada, traída.

- Beth.

Era como se um pedaço da vida fosse subtraído e ela não pudesse fazer nada para recuperar. Sentia raiva, medo, revolta e também culpa. Como se, de alguma forma, algo que ela tivesse feito ou deixado de fazer, contribuísse para a morte da pessoa.

- Beth.

As mortes que ela mais tinha sentido na vida haviam sido a do cachorrinho Fred, da amiga Mira e, já adulta, a da mãe. Mas parecia que a morte nunca havia chegado tão perto dela. Nem mesmo quando tinha tentado se matar.

- Beth.

Em cada morte, tinha sido diferente e ela tinha sentido de um jeito. A de Fred era fria, confusa, macia como a pelagem, seca como o barulho do porta-malas do carro se fechando, marrom como a terra.

- Beth.

Na morte de Mira, havia cheiro de cigarro, sensação de vazio, azul da nesga de céu vista da janela em intermináveis horas deitada na cama, som deBlack do Pearl Jam, gosto acre de revolta apodrecendo na boca.

- Beth.

Quando sua mãe morreu, era uma espécie de suspensão, de amortecimento dos pensamentos e dos sentidos. Mas Beth lembrava do cheiro das flores, da cor castanha da madeira do caixão, da sensação de abraços incompletos, do som de passos teimosos na cozinha vazia e da dor provocada pelo tempo irrecuperável.

- Beth.

Agora, parecia tudo agudo e ao mesmo tempo misturado. Como se o ranger da madeira de um barco jogado pelo mar tivesse um gosto, como se uma risada tivesse perfume, como se músicas queimassem e palavras espetassem como alfinetes e carinhos antigos tivessem cores esmaecidas. - Não agora - pensou Beth - Não ele.

- Ismael.

(Continua na série de posts "INVENTÁRIOS")

sábado, 5 de julho de 2008

INVENTÁRIOS 41



Being There




(Continuação da série de posts "INVENTÁRIOS")

"Eu nunca estive aqui" - pensou Beth, enquanto a gerente de Recursos Humanos explicava as razões pelas quais ela estava sendo demitida da empresa. Seis anos tinham se passado, entre estágio e contratação para a equipe de psicólogas do RH daquela grande empresa do Pólo. "Estranho" - pensou de novo Beth - "isso aqui nunca fez parte da minha vida".
Naquela noite ela chegou em casa e a saída da empresa realmente não lhe trazia preocupações. Outras coisas a incomodavam por dentro. A demissão aconteceu pouco mais de um mês antes do momento em que Beth ficou parada em frente à porta, com a chave na fechadura.

Ismael estava em casa quando Beth chegou. Depois de tomar um banho, ela se sentou no sofá, ao lado de Ismael, que jogava videogame. Sem tirar os olhos da tela, Ismael começou a falar sobre os e-mails estranhos e "spams" que tinha ecebido naquele dia. Falou também, agora sem parar, das novas teorias conspiratórias que ele e seu amigo Rafael brincavam de inventar sobre como a internet e os videogames dominavam o mundo fazendo a cabeça das pessoas.

As lágrimas começaram a sair dos olhos de Beth e ela pensou, ainda uma vez: "Eu nunca estive aqui, também". Lembrou dos últimos dias malucos que vinha vivendo de um jeito descontrolado. Do jeito como foi parar num motel barato com o motoboy da empresa, um cara por quem ela não tinha nem admiração nem atração e que mal se despediu dela quando saiu. E de como, depois, sentiu culpa e vergonha, principalmente porque sabia que vinha sendo covarde e que se privava do direito de ser feliz porque não conseguiu tomar a decisão de terminar uma relação que já não lhe fazia mais bem.

- Eu preciso ir - Beth disse a Ismael.
- Ir? Aonde? Você acabou de chegar?
- Ir. Embora. Daqui. Pra sempre. Você entende?
Ismael largou o videogame e olhou para Beth.
- Eu sabia que isso tava pra acontecer. Você andava estranha ultimamente. Se arrastando pelo chão. Achei que uma manhã dessas eu ia acordar e ver você se transformando numa barata.
- Não sou eu que tô estanha. É a gente. Eu preciso ir. Entenda. Não me pergunte mais nada. E não faça nenhuma das suas piadas. Não agora. Isso é importante pra mim.
- Eu não quero que você vá embora, Beth. Eu ainda gosto de você.
- Não dá. Eu preciso ir. Mais tarde a gente conversa melhor. Agora não dá.

Beth levantou e foi até o quarto. Pegou a grande mala verde de viagem e começou a colocar suas roupas dentro. Olhou em volta e havia um monte de badulaques e pertences espalhados. Muita coisa comprada naqueles quase dois anos juntos e quase nada daquilo parecia ser seu. "Eu não estive nem mesmo aqui"- pensou.
Passou pela sala e se despediu, mas Ismael mal se virou, entretido com o videogame. Beth fechou a porta e ainda pode ouvir um grito vindo lá de dentro. Era Ismael vibrando. Tinha conseguido passar mais uma fase do jogo.

(Continua na série de posts "INVENTÁRIOS")

domingo, 29 de junho de 2008

INVENTÁRIOS 40



Come chocolates, pequena






(Continuação da série de posts “INVENTÁRIOS”)

Já fazia quase seis meses que Beth não chamava por Bárbara à procura de respostas para suas perguntas. Nos últimos tempos, ela andava confusa até sobre quais seriam as suas perguntas.
Naquela noite, Beth acreditava que tinha uma pergunta boa de verdade e se arriscou a chamar Bárbara, a mulher que lhe aparecia, como se fosse do nada, com respostas para tudo.
- Quanto tempo? Achei que não precisava mais de mim – disse a mulher de vermelho, surgindo, de repente, sentada nos pés da cama de Beth.
- Pois é. Eu andava um pouco confusa. Não tinha pergunta. Ou tinha muitas. Não sei...
- E agora, você tem?
- Mais ou menos...
- Sim ou não?
- Tenho sim. Eu quero saber o que é o amor?
- Hmmmmm...
- Isso já a resposta? - Perguntou Beth
- Hahaha. Estou aprendendo a gostar e a achar engraçadas as suas ironias. Realmente a sua pergunta não é simples. A resposta dela, na realidade, é fácil, mas é difícil traduzi-la no seu nível de entendimento.
- Como assim?
- Você enxerga o amor como uma coisa só, única, constante, uniforme e coerente. Mas não é.
- Não existe um amor, mas todos os amores. Cada amor é diferente do outro e em cada momento o amor muda e se torna diferente. Pode evoluir, se tornar melhor, ou pode voltar atrás e se tornar cada vez mais egocêntrico e egoísta.
- Entendo. Mas porque é que a pessoas falam o tempo todo no amor, o amor isso, o amor aquilo, só o amor constrói e salva e o cacete a quatro... E depois a gente fica sentindo falta disso na vida da gente...
- Faz falta sim. Mas não do jeito que você imagina ou espera. Você quer tanto que uma coisa seja de determinada maneira, planejou tanto ela, construiu tantas imagens e expectativas baseadas nas coisas que você leu, ouviu ou assistiu, que qualquer coisa diferente, mesmo que seja melhor, não vai servir.
- Hmmmm, digo eu, agora...
- Você fica esperando um sorvete de chocolate. Colocou na cabeça que o que vem é um sorvete de chocolate. Está tão convencida de que o que você precisa e o que vai te fazer feliz é um sorvete de chocolate que, venha o que vier, seja o melhor sorvete, o mais gostoso do mundo, e você vai achar ruim. Simplesmente porque não é de chocolate.
- Mas o que eu faço, então, paro de tomar sorvete?
- Deixe o sorvete vir até você. Pode ter expectativas, mas nada tão duro, restritivo e inflexível. Deixe o paladar sentir, aprecie o momento, experimente, descubra a delícia da surpresa, do inesperado, do novo, do nunca experimentado.
- Você devia trabalhar com publicidade. Iria vender muito sorvete. Rsrsrs.
- Hahahaha. Gostei da idéia.
- Só mais uma pergunta: porque é que a gente cria essa expectativa de sorvete de chocolate?
- É o medo do novo. Um medo de que fuja do nosso controle. De que venha algo muito ruim, ou então, algo tão bom que a gente goste tanto que não queira mais parar.
- Interessante. É uma idéia bem estimulante.
- É verdade. O novo é sedutor mesmo. Quase tanto quanto o comodismo.
- Comodismo?
- É, o medo de se perder o que se tem, por menos que seja, leva a essa acomodação. E vou te dizer: a submissão pode, muitas vezes, ser mais sedutora do que o poder.
- Não sei se eu entendi isso.
- Não precisa. O importante é que você entendeu a coisa do sorvete de chocolate.
- Sei. O amor é um sorvete de chocolate que pode ser de outros sabores: cajá, mangaba, biri-biri, graviola, coco e até de nata.
- Mais ironias...
- Não posso evitar.
- Bom, agora eu tenho que me despedir de você. Essa foi a sua última pergunta.
- Como assim? É como aquelas coisas de gênio das Mil e Uma Noites? Tem número certo? Eu não sabia...
- Acho que agora você tem condições de responder por si mesma as suas perguntas. Não precisa mais da minha ajuda. Adeus.
- Mas eu, eu... Lá foi ela. Me deixou falando sozinha de novo. Bárbara. João. Sei lá. Que coisa. Alucinação mais doida. Eu devia ter perguntado os números da mega-sena, ou o final de Lost, ou porque o Brasil perdeu a Copa de 1998 na França. Ou, sei lá, devia ter perguntado quem ela ou ele era...

(Continua na série de posts “INVENTÁRIOS”)



domingo, 22 de junho de 2008

INVENTÁRIOS 39



Running to stand still




(Continuação da série de posts "INVENTÁRIOS")


Beth olhou no espelho. Olhos vermelhos. Olhos pequenos. Rosto cansado. Perguntas...
Difícil reconhecer que o cinismo, que tanto a ajudara a se defender dos golpes da vida, agora não poderia protegê-la.
Vontade de nada. Nenhuma música. Nenhuma posição na cadeira. Sem fome. Sem capacidade de reação. Lembrou do conselho de uma amiga:
- Quando a gente não sabe o que fazer, então é melhor não fazer nada.
Remexeu os CDs, tirando um a um da estante, mas não achou nenhum que quisesse ouvir. Olhou os arquivos de música no computador: nenhuma que prestasse naquela hora.
Pensou em algo, talvez dos anos 80. Lembrou do comentário de outra amiga, dizendo que a década pós virada do milênio glorificava os anos 80 e rejeitava os 90. Assim como, nos anos 90, todo mundo cultivava os 70 e torcia o nariz para os 80. E assim por diante.
Uma música. Sim, uma música dos anos 80. Procurou. Queria ouvir essa. Dos anos 80. E ouviu algumas dezenas de vezes sem parar naquela noite. "She's running to stand still". U2.


Running to Stand Still

And so she woke up
Woke up from where she was
Lying still
Said I gotta do something
About where we're going

Step on a steam train
Step out of the driving rain, maybe
Run from the darkness in the night
Singing ha, ha la la la de day
Ha la la la de day
Ha la la de day

Sweet the sin
Bitter the taste in my mouth
I see seven towers
But I only see one way out
You got to cry without weeping
Talk without speaking
Scream without raising your voice

You know I took the poison
From the poison stream
Then I floated out of here
Singing...ha la la la de day
Ha la la la de day
Ha la la de day

She runs through the streets
With her eyes painted red
Under black belly of cloud in the rain
In through a doorway she brings me
White gold and pearls stolen from the sea
She is raging
She is raging
And the storm blows up in her eyes

She will...
Suffer the needle chill
She's running to stand...
Still


(Continua na série de posts "INVENTÁRIOS")

domingo, 15 de junho de 2008

INVENTÁRIOS 38


Femme accroupie




(Continuação da série de posts "INVENTÁRIOS")

Com o passar dos meses, vivendo junto de Ismael, Beth começou a perceber que havia algo que realmente criava uma grande distância entre os dois. Não que Ismael não fosse bom para ela, ou que não lhe desse atenção, carinho, sexo e a força constante do seu bom humor e leveza. Mas havia uma espécie de buraco dentro dela que a presença de Ismael não conseguia preencher.
Era como se Beth tivesse uma fome que jamais pudesse ser saciada, uma sede que nem toda água do mundo pudesse matar, um desejo que nunca era satisfeito e permanecia como uma dor que nunca parava de doer. Demorou um pouco também para Beth perceber que não poderia culpar Ismael por isso, já que o problema era seu.
Mas essa percepção não veio sem uma certa decepção. Para ela, Ismael, repentinamente, desceu do alto dos céus para o rés do chão (lugar do qual ele próprio talvez jamais tivesse desejado sair). Ismael sentiu esse distanciamento de Beth, mas achou normal, já que considerava exageradas mesmo as expectativas dela.
Para Beth, porém, o impacto foi grande, já que ela depositava nele a esperança de que um dia sua angústia fosse mitigada. E o vazio pareceu crescer diante de Beth com a constatação de que sua alma era insaciável.
O que ela sentiu então lhe lembrou da descoberta da poesia de Florbela Spanca, quando tinha 19 anos. Beth se identificava muito com a poesia dela e com a arte de outras mulheres desesperadas. Com as esculturas doloridas de Camille Claudel, a hipersensibilidade de Billie Holiday, as visões do mundo e de si mesma de Frida Kahlo, os gritos de Janis Joplin e a intensidade de Elis Regina.
Ultimamente, gostava de ouvir Amy Winehouse, mas achava que o sofrimento dela, embora fosse verdadeiro, era mais uma herança do que um sentimento original. Nessas horas, nada melhor do que a poesia de Florbela e o seu poema preferido era “Eu...”

EU...

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...

Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber por quê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou!

Florbela Spanca

(Continua na série de posts “INVENTÁRIOS”)

quinta-feira, 12 de junho de 2008

INVENTÁRIOS 37



Ambivalências




(Continuação da série de posts “INVENTÁRIOS”)

Um pequeno coelho prateado enfeitava o chaveiro que Beth ganhou de Ismael no dia em que os dois passaram a morar juntos. Mais tarde, no dia em que ficou parada em frente à porta de casa, Beth pensou em quantas vezes tinha brincado com o chaveiro enquanto os pensamentos iam e vinham em momentos de distração ou de nervosismo.
- Um coelho? – perguntou Beth.
- É. Um coelhinho – respondeu Ismael - pra dar sorte. É símbolo de fartura.
- E de apetite sexual...
- Isso também – riu Ismael
- Isso é bom.
- Você parece um pouco nervosa. Eu tenho visto isso nos últimos dias. Por que isso, meu amor?
- Sei lá. Fico pensando. Pra mim é uma coisa séria a gente vir morar junto. Pode dar errado, não sei...
- Isso pode ser qualquer coisa. Pode dar errado com a gente morando separado também...
- É que tudo tem sido tão bom com a gente junto. Eu não queria estragar isso.
- Eu entendo. Só não sei por que você se preocupa tanto.
- Eu fico tentando entender o sentido das coisas, da vida...
- E eu é que sou professor de filosofia. Você já pensou que a vida pode não ter sentido nenhum?
- Algumas vezes. Você pensa assim?
- Penso. E acho que além de não ter sentido nenhum, tudo o que a vida faz sempre é nos provar justamente isso, uma vez atrás da outra, até que a gente perca a esperança de que ela tenha um sentido.
- Mas isso já seria um sentido, não seria?
- Hahahaha. Agora você me pegou. Seria sim. Mas é um não sentido. Hahaha.
- Não sei, Ismael. Você parece confortável em não acreditar em nada. E eu preciso sempre acreditar em alguma coisa.
- Você precisa parar de querer carregar o mundo nas costas, de ficar cultivando essas dores, essas experiências ruins do passado. De ficar encasquetando com tudo, achando que tudo tem um porquê.
- Acho que um dia eu já não vou ter mais no que acreditar, mas aí eu já não vou ter mais nenhuma dúvida mesmo. Mas isso é triste. Acho que se a gente não tem mais dúvidas, só tem certezas, e se só tem certezas, não tem mais esperanças.
- Isso é poesia, não é filosofia.
- É que eu achava que o amor poderia ser uma certeza, entende?
- Mas não é. Não existem certezas eternas. Muito menos no amor. E, como diz aquele livro do sociólogo Pedro Demo, a gente só tem a certeza da incerteza.
- É difícil, pra mim, viver assim.
- É pra todo mundo. Mas é assim que as coisas são. A gente não sabe do amanhã.
- Mas eu preciso de referências.
- A única referência com a qual você pode contar é você mesma. Muita gente escolhe Deus, a família, uma ideologia, uma instituição, uma busca, um projeto de vida e até um amor. Aliás, é muito comum as pessoas procurarem isso numa pessoa amada. Mas ela não pode dar isso. Ninguém pode. Você só pode ter certeza dentro de você mesma.
- Mas eu não tenho. É tudo muito confuso, incoerente e inconstante. Eu mudo de idéia a cada hora. Não sei o que fazer e não sei que caminho eu tenho que seguir. Como eu posso ser referência.
- Você vai ter que se virar. Vai ter que aprender. Se não, você nunca vai ser feliz de verdade. Vai viver a vida sempre em função de alguém ou alguma coisa, num estado de apreensão e insegurança insuportável.
- Me sinto perdida e sozinha assim...
- É assim que todos nós estamos. Você precisa aprender a lidar com isso, com a solidão das nossas decisões. O que não significa que eu não esteja do teu lado, te apóie e te ame. Mas não coloque em mim as tuas certezas. Não é justo comigo nem com você. Muito menos com o nosso amor.



(Continua na série de posts “INVENTÁRIOS”)

sexta-feira, 6 de junho de 2008

INVENTÁRIOS 36


ECOS




(Continuação da série de posts “INVENTÁRIOS”)

Seis semanas antes do dia em que Beth está parada, de pé, em frente à porta com a chave na mão, ela chora, sentada no chão de um banheiro sujo de bar. Bêbada, ela não lembra da música de Cazuza e os pensamentos se traduzem em palavras que se repetem em círculos dentro da cabeça como um eco doentio.

Tudo. Tudo. Agora nada. Nada. Nada. O mesmo. O mesmo. Ou diferente? O outro. O outro. O outro. O outro. Tudo. Tudo. Tudo. Por que? Por que? Por que? E eu? E eu? E eu? Sina. Sina. Sina. Tudo. Tudo. Nada. Nada. E agora? E agora? O outro. O outro. Os outros. Os outros. Por que? Por que? Por que? Sina. Sina. Sina. Eu vi. Eu vi. Eu vi. Eu sabia. Eu sabia. Eu sabia. Eu sempre soube. Eu sempre soube. Eu sempre soube. Não. Não. Não. Não pode ser. Não pode ser. Não pode. Diferente. Diferente. Igual. Igual. Tudo. Tudo. Tudo. Tudo. E agora... E agora... E agora... Sina. Nada. Sina. Nada. Sina? Nada? Nada. Sina. Por que? Porque. Tudo? Tudo? Tudo... Tudo... Porque... Porque... Porque... Sina... Sina... Nada... Sina... Nada não. Nada. Não. Nada? Não? Não? Não! Não! Não! Não... Não... Não... O mesmo. O mesmo. E agora... Por que? Por que? Por que? Sempre soube. Soube? Soube? Soube... Soube... E eu? E eu? E eu... E os outros? E o outro? O outro!!! O outro... O outro. Sina. Sina. Agora. Sina. Não. Tudo. Nada. Eu. O outro. O outro. O outro. E agora? E agora? E eu? E eu? Diferente. Diferente. Igual? O mesmo? Folhas. Folhas. Folhas. Passam. Passam. Passam. Tudo. Tudo. Tudo. Mesmo. Mesmo. Mesmo. Morte. Morte. Morte. Fica. Fica. Fica. Vai. Vai. Vai. Chega. Chega. Chega...

(Continua na série de posts “INVENTÁRIOS”)

quarta-feira, 28 de maio de 2008

INVENTÁRIOS 35



Ouriços e abraços




(Continuação da série de posts "INVENTÁRIOS")


Quando Beth era criança, assistia aos desenhos e filmes na TV, lia livrinhos e ouvia as estórias que a professora contava na escola. Gostava sobretudo dos finais felizes, onde tudo era fácil, límpido e mecanicamente justo. Onde os mocinhos eram mocinhos e os bandidos eram bandidos e estes sempre acabavam mal.
Pessoas velhas, feias, deformadas, pobres e que viviam em lugares sujos e escuros eram sempre as vilãs das estórias. Sofriam de inveja, cobiça e ciúme. Tinham instinto cruel e vingativo. Não amavam ninguém.
O mundo, então, para Beth, não possuía tons de cinza. Não havia dúvidas, não havia sombras. Havia os bons e os maus e só as pessoas ruins podiam machucar os outros.
Houve um tempo, também, em que Beth achou que tinha algo de mau dentro si, porque seus pais a repreendiam o tempo todo e ela sentia culpa por pequenas coisas que fazia de errado. Mais tarde, aprendeu que poderia ser perdoada, mas continuava achando que fazia coisas ruins.
Adolescente, Beth se apaixonou muitas vezes e, em algumas delas achava que era amada. Foi aí que descobriu que mesmo pessoas que amam podem machucar. E que quanto mais se ama alguém, mais se pode ser machucado por esta pessoa com palavras ou ações descuidadas.
Muitos anos depois, morando com Ismael, Beth ainda tinha medo da possibilidade de ser machucada. Procurava se proteger da dor que poderia sentir e quanto mais via que Ismael não tinha o mesmo medo, mais fechada ficava.
Dois anos juntos e ele parecia imune a inquietações e de uma segurança absurda em relação a tudo. Não tinha ciúmes, não perguntava sobre como iam as coisas no trabalho dela, o que ela pensava, o que sentia ou aspirava. Não procurava fazer nada para agradá-la, para mantê-la junto dele. Parecia indiferente e acomodado com a situação.
Beth, por outro lado, parecia sempre estar mudando sua maneira de pensar e questionava todas as coisas o tempo todo. Se para Ismael, as coisas à volta não precisavam mudar nunca, para Beth havia a necessidade de coisas novas sempre.
No começo, a passividade de Ismael, que a ouvia questionando uma coisa aqui e outra ali, mas aceitando tudo, deixava Beth contente. Com o tempo, passou a irritá-la e o silêncio dele, ironicamente, ficava ainda maior.
Depois de um tempo, ela contava cada vez menos coisas a ele e ele perguntava cada vez menos também. E o silêncio foi abrindo um grande espaço entre os dois. E Beth sentia falta de seu amigo querido de antes.
Certa noite, comentou com Ismael que tinha lido um artigo numa revista falando sobre a dificuldade que as mulheres tinham de encontrar o seu homem ideal:
- De um lado, as mulheres querem a segurança do amigo, do companheiro que entenda, incentive e ame incondicionalmente. De outro, elas querem o amante, o homem misterioso que traga o fogo, o desejo e deixe elas inseguras – comentou Beth.
- É difícil entender isso.
- Não sei se isso é só da mulher, não. Acho que tem a ver com todo mundo. É porque o sexo só é bom se tem um tipo de tensão. Se tem mistério, disputa de poder, controle e outras coisas assim.
- Mas como é que fica a segurança de uma relação mais profunda?
- Não sei. Talvez quanto mais a gente se conhece e se entrega, mais tem a perder e isso aumenta a tensão, o poder que o outro tem sobre a vida da gente e isso pode aumentar o desejo. Você não acha?
- Não sei. Acho que, num determinado ponto, as coisas começam a esfriar e não tem mais jeito – respondeu Ismael, num tom de suspiro, que deixou Beth triste.
Beth não insistiu na conversa. Abraçou o travesseiro e lembrou das estórias infantis, dos finais felizes e dos mocinhos que eram mocinhos e dos bandidos que eram bandidos. Sempre.


(Continua na série de posts "INVENTÁRIOS")

domingo, 25 de maio de 2008

INVENTÁRIOS 34


Circunstâncias




(Continuação da série de posts "INVENTÁRIOS")



Numa das primeiras vezes em que Beth e Ismael saíram juntos, ela falou a ele sobre os sonhos que tinha. Falou também das visões com o homem de terno branco que tinha respostas a todas as perguntas que ela fazia.
Ismael achava tudo muito interessante, fazia perguntas e discutia detalhes. Nunca questionava nem tentava explicar. Para ele, o mundo era grande e cheio de coisas que simplesmente não tinham explicação.
- Isso pode ser qualquer coisa! – era uma das frases preferidas dele.
Na noite anterior, Beth tivera um sonho que lhe tinha deixado impressionada. No sonho, ela andava por um belo campo num dia de sol, num lugar plano e absolutamente tranqüilo. De repente, sem qualquer explicação, o chão se abriu sob os seus pés ela caiu desesperada num vazio sem fim. Acordou assustada e com a sensação muito forte do inesperado.
Não sabia explicar aquilo e o sonho a assustava. Comentou com Ismael, que achou interessante, mas disse que ela não devia se preocupar com isso.
- Pode ser só um sonho – disse ele.
- Mas e se for um sinal ou qualquer coisa assim? Uma mensagem, um pedido de socorro do meu inconsciente?
- Se fosse, acho que você ia entender. Quem quer mandar uma mensagem quer que o outro entenda. Não faz tanto mistério com enigmas.
- Mas no plano dos sentimentos as coisas não são tão simples assim. Tem muitas coisas que não passam pelo racional. Você não se preocupa com isso? – questionou Beth.
- Essas coisas não me preocupam tanto.
- É mesmo?
- É. Eu sinto você com a alma angustiada, sempre cheia de perguntas, mas comigo as coisas não são assim. Prefiro ver como os outros lidam com as vidas deles e estudar os pensadores da filosofia. Não fico pensando tanto assim sobre a minha vida. Fazendo esses balanços e inventários.
- Eu preciso sempre disso pra saber onde estou, como cheguei aqui e pra onde eu vou.
- Acho que eu sempre fiquei no mesmo lugar. Acho que não vou a nenhum lugar no mundo. É ele que se mexe. Eu fico parado.
- Não sei se isso é bom ou ruim...
- É o que é. Só isso.



(Continua na série de posts "INVENTÁRIOS")

terça-feira, 20 de maio de 2008

INVENTÁRIOS 33


Persona 2



(Continuação da série de posts “INVENTÁRIOS”)

Beth ouviu as palavras de Bárbara, mas aquilo não a deixou satisfeita.
- Mas isso vira uma pressão. Todo mundo fica cobrando que você seja o tempo todo alguém moderno, na moda, que saiba das coisas...
- Todo mundo quem? – questionou Bárbara.
- Ora, todo mundo, as pessoas que tão em volta.
- Você já parou para pensar se isso está realmente nas pessoas em volta, ou se essa cobrança vem de você.
- Nunca pensei nisso desse jeito. Pode ser. Sei lá.
- Se você dá toda essa importância pra isso, acaba se tornando uma pressão insuportável. É viver pelos olhos dos outros e não viver a sua vida por você.
- Isso me toma muita energia e tempo.
- Então tente prestar menos atenção nisso. Tente pensar naquilo que você realmente quer ser.
- Acho que a gente está sempre querendo que as pessoas achem a gente bacana.
- Em resumo: você quer ser aceita pelas pessoas.
- É. É isso. Desde criança eu sempre fiquei meio de lado. Acho que até hoje eu inconscientemente fico procurando ser aceita pelo grupo.
- Mas se você tenta ser uma Beth que você não é, quem vai ser aceita não será você de verdade, não é?
- É. Tá certo.
- Então, vale a pena todo esse esforço?
- Não mesmo.
- Então deixe tudo isso para lá.
- Mandar tudo por alto?
- Isso mesmo.
- Grande idéia. Mas eu consigo?
- Tente. No começo você vai conseguir algumas vezes e, outras, não. Mas se você se esforçar, logo vai se sentir bem mais livre desse peso.
- É. Vou tentar. Acho que eu não consigo ser desencanada assim. Mas só de pensar já meu deu uma alegria danada: mandar tudo à zorra. Muito bom.
- Então eu vou indo.
- Já? Assim? Bom. Você pelo menos se despede. O João nem ao menos... É não esperou eu terminar. Foi embora. Mas, como ela disse: mandar tudo à merda. Muito bom. Que alívio que isso dá!

(Continua na série de posts “INVENTÁRIOS”)

terça-feira, 13 de maio de 2008

INVENTÁRIOS 32


Persona 1




(Continuação da série de posts "INVENTÁRIOS)

Beth sentia alguma dificuldade para dormir naquelas noites. Estava para se mudar para a casa de Ismael e isso a deixava um pouco ansiosa. Apesar da relação profunda que os dois haviam desenvolvido nos últimos meses, achava aquela decisão era importante demais para ser tomada em tão pouco tempo. Na verdade - ela mesma admitia - tinha muito medo.
Numa dessas noites, pediu novamente a ajuda do "bibliotecário" João, o homem estranho que lhe aparecia como se fosse um sonho e trazia respostas para as suas perguntas. Sentada em sua cama, bastou Beth pensar na pergunta e chamá-lo, que mais uma vez ele apareceu.

- João?

- Estou aqui.

- Você é sempre muito rápido.

- Sim, se você tiver a pergunta bem definida.

- Tenho sim. Mas, antes dela, quero fazer uma pergunta da minha curiosidade. Posso?

- Pode.

- Essa é a sua imagem mesmo? Você é assim porque aparece assim pra mim, porque eu interpreto desse jeito? Afinal, você poder ser de outro jeito? Uma mulher, por exemplo?

- Esta é apenas uma das formas em que eu posso aparecer, mas se você quiser, pode me ver como mulher. Quer?

- Quero sim.

O homem moreno de terno, chapéu e sapato brancos transformou-se, de repente, numa mulher de cabelos pretos compridos, usando um vestido vermelho, que Beth considerou bastante espalhafatoso.

- Nossa - exclamou Beth.

- Senti uma ironia no seu olhar e na sua observação - disse a mulher com uma voz macia e um sotaque um pouco arrastado.

- Não é nada, não. Foi só a mudança.

- De qualquer forma, fico feliz que você tenha perdido o medo, mas espero que não perca o respeito. Não é recomendado para você.

- Não, não. De jeito nenhum. Mas e agora? Não posso mais chamar você de João. Como eu chamo você?

- Bárbara!

- Pronto. Gostei.

- E a sua pergunta?

- Eu sei que eu já perguntei uma coisa parecida, mas é que essa coisa não tá ainda bem clara pra mim. E é bem importante.

- Se é importante pra você, é importante pra mim também. Diga.

- Eu queria saber se a gente nasce como se fosse um recipiente vazio e depois a vida vai enchendo, ou se a gente já vem com muita coisa dentro.

- Você não é um recipiente vazio. Mesmo quando nasce.

- Mas parece que tudo vem do mundo de fora pra dentro. Que vai enchendo a gente com as experiências e a gente vai se tornando o que o mundo nos torna. Não é?

- As experiências são muito mais o que você interpreta delas do que propriamente uma coisa já pronta. Tudo depende de como você assimila, como você guarda elas dentro de você, ou seja, o que você faz com elas.

- Mas e essa chuva de informações o tempo todo bombardeando a gente? A cultura, a moda, a política, todas essas coisas, o que isso faz com a cabeça da gente? Isso muda o nosso jeito? Se não, como a gente evolui como pessoa?

- Vocês estão sempre buscando uma referência. Procurando uma certeza vinda fora. Isso é próprio da sua condição. Não é novo. O homem das cavernas também procurava vestir colares com garras ou dentes de animais, o que para ele significava assumir a força deles. É a mesma coisa quando alguém vai comprar uma roupa que determinada personalidade usa. Essa pessoa se identifica com a celebridade. A idéia é transferir para si algumas das qualidades dessa pessoa, mostrar que está por dentro da moda, que é legal, moderno ou qualquer coisa assim. É uma espécie de fetichismo.

(Continua na série de posts "INVENTÁRIOS)

quarta-feira, 7 de maio de 2008

INVENTÁRIOS 31


ÁGUAS PROFUNDAS




(Continuação da série de posts "INVENTÁRIOS")

Beth estava sentada num bar com sua amiga Cíntia. Precisava conversar sobre as coisas que lhe passavam pela cabeça. Estava angustiada e com medo, embora, ao mesmo tempo, sentisse uma grande excitação.

- Tudo isso é muito estranho pra mim, Cíntia. Ainda não sei o que eu vou responder.

- Faz quanto tempo que vocês tão namorando?

- Quase cinco meses.

- E você gosta dele?

- Gosto. Muito.

- Então, qual é o problema?

- Não sei. Morar junto é uma coisa nova pra mim. Não sei se vai dar certo. Não sei se eu tenho estrutura. Não sei se Ismael é maduro o suficiente pra isso. Não sei se eu sou...

- Você tem medo de abrir mão da sua privacidade?

- Não, não é isso. Eu tenho medo de não dar certo, de falhar, sei lá...

- Ele morava até pouco tempo com os pais, né?

- É. E fui eu que incentivei ele a sair de casa, a alugar aquela casa no village. E agora ele quer que vá pra lá.

- Mas vocês dois passam o final de semana inteiro juntos lá. Você vai na sexta à noite e só sai na segunda de manhã. Já sabe mais ou menos como é. E vocês também já viajaram juntos.

- Pois é. Não sei...

- Do que é que você tem medo realmente?

- Medo. Acho que não é medo, não. Acho que eu tô é apavorada.

- Mas por que?

- É que as coisas nunca deram certo pra mim nesse lado da emoção, sabe? De algum jeito, as coisas sempre dão errado. Eu tive uns namorados bem tranqueiras. E nas vezes em que eu gostei muito de alguém, alguma coisa de ruim aconteceu com ela.

- Se alguma coisa deu errado antes, não significa que vai dar errado de novo...

- Não sei, não sei, não sei - repetiu Beth nervosa.

- Acho que você está exagerando. Se não der certo, você volta pro apartamento.

- E se ele deixar de gostar de mim. Se ele descobre que eu não sou legal e que ele não gosta mesmo de mim?

- Se isso é verdade, não faz diferença se vocês tão morando juntos ou não, ele acaba descobrindo de qualquer jeito.

- É?

- É.

- Isso não ajuda muito...

- Bom, acho que você tá nervosa demais. Acho que ele gosta muito de você e você dele. E vai dar certo. Pelo tempo que tiver que ser, vai dar certo.

- Não sei, não sei, não sei - repetiu mais uma vez Beth, começando a roer as unhas.

- Olha só: para com isso. Ele é um cara legal. Vai dar tudo certo. Mesmo.

- Você acha?

- Acho.

- Por que as coisas são tão complicadas assim?

- Não são?

- Não são mesmo. Você é que tá fazendo ficar complicado.

- Mesmo?

- Mesmo. Se você não tentar, não vai saber se daria certo. Se for pra dar errado, vai dar errado agora ou mais tarde. No fundo, você não tem nada a perder. Só a ganhar.

- É verdade.

- É.

- Eu gosto muito do Ismael.

- Pronto.

- E ele gosta de mim. E a gente se dá tão bem. Em tudo: nas nossas idéias, no nosso jeito, na cama, nas coisas que a gente gosta...

- Viu? É isso mesmo.

- Acho que eu nunca ia me perdoar se eu não tentasse.

- Isso mesmo.

- É, acho que é isso mesmo.

- Tá convencida?

- Acho que sim.

- Que bom.

- É. E agora é respirar fundo.

- É. E vê se pede mais uma cerveja. Vamos ver se você se acalma. E para de roer a unha, tá?

- Tá certo. Eu vou tentar...

(Continua na série de posts "INVENTÁRIOS")