quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

IMPERTINÊNCIAS 6


Ligação com o mundo interior

A carta de número 2 do Tarô é a Sacerdotisa ou Papisa. É o arquétipo feminino mais básico, ligado à maternidade ainda no estágio da concepção, e também à criatividade e à intuição. Representa a ligação do ser ao seu próprio inconsciente. Por isso, no Tarô Mitológico, a carta é representada por Perséfone, a esposa de Hades, deus grego das profundeza, do inferno, do subconsciente. Ou seja, onde enterramos nossos monstros e fantasmas. Perséfone foi raptada por Hades, e ele, pressionado pelos deuses, acabou fazendo um acordo, onde a mulher passava todos os anos seis meses na superfície e seis meses no inferno.
Perséfone tornou-se, então, um ser cambiante entre os dois mundos, entre a luz e a escuridão, entre o conhecido e o misterioso, entre o consciente e o inconsciente. A mãe de Perséfone era a deusa Ceres, ligada à agricultura. Por isso, Perséfone também é vinculada à imagem da semente, que é enterrada, passa as estações frias debaixo da terra, e depois irrompe para viver sob a luz do sol o resto do ano. Depois de colhida, ela é enterrada novamente, reiniciando o ciclo.

Daí, a necessidade de que certos conceitos e sentimentos sejam enterrados e morram para ressuscitar de forma iluminada e produtiva. É o sacrifício da semente. O mito do herói ressuscitado está muito presente na história da Humanidade, passando por figuras sagradas em diversas culturas, como Jesus, Orfeu e Osíris.
Se na primeira carta do tarô, o Mago, o desafio é iniciar a caminhada, fazer descobertas e enfrentar as próprias limitações, a Sacerdotisa leva o ser a uma visita ao que ele tem de mais profundo. E mais, ela traz para o lado de fora – o consciente – as revelações necessárias para a vida aquele momento.
Por isso, a carta também é ligada à criatividade, à intuição, àquilo que está sendo gerado no interior do ser. Está ligado ainda ao estágio em que o ser humano está tão profundamente ligado à mãe que ainda vê a si mesmo e ela como um só ser. A consciência do Eu começa a ser construída e isso implica percepção do outro, diferenciação, separação, dor, descoberta e, finalmente, crescimento.




Ilustrações:
1 – A Sacerdotisa – baralho do Tarô Mitológico
2 – A Papisa – baralho do Tarô de Marselha3 – A Sacerdotisa – baralho do Tarô de Aleister Crowley

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

IMPERMANÊNCIAS 6





Cobertores




O livro em quadrinhos "Blankets", de Craig Thompson, é uma das melhores coisas que eu já li. Ganhei de presente de Natal de Greice e só agora terminei de ler. Degustei bastante. As ilustrações são maravilhosas e as seqüências de quadros trazem incríveis sensações. Sei que estes são adjetivos muito vagos, mas não há muito de concreto a dizer sobre todas as impressões que o trabalho gráfico de Craig Thompson causa.

A verdade é que, a cada página lida, eu queria voltar e ler de novo. Ver mais uma vez cada quadro, cada ilustração. Não que os desenhos sejam muito complexos: são simples e diretos, mas a forma e o ritmo trabalham de uma maneira conjunta que funciona muito bem. Simples. Mas de encaixe perfeito.

O enredo também é simples e conta a história real do primeiro amor do autor. Enquanto Craig se debate na decisão de qual rumo tomar em sua vida, lutando internamente com uma formação católica extremamente repressora, ele conhece Raina, sua primeira paixão. Tudo tem a ver com dividir um cobertor, ou seja: confiar, se entregar, dividir, compartilhar até os últimos centímetros do corpo e da alma. É uma história bonita, cheia de humor e poesia. Faz a gente se emocionar, suspirar e rir.

domingo, 27 de janeiro de 2008

INVENTÁRIOS 5


Alma fragmentada




(Continuação – ver os outros posts da série Inventários)

Pelo que Beth se lembrava, aquele sentimento de inadequação estivera com ela desde sempre. Desde as festas infantis, quando as crianças com quem ela queria brincar a rejeitavam. E aquelas que a perseguiam propondo todo o tipo de brincadeiras, ela considerava aborrecidas e fugia delas. Ficava, então, sempre sozinha, e podia sentir o olhar de reprovação dos adultos, achando Beth uma criança estranha e triste.
Sentia-se ainda pior quando todos a comparavam com Ricardo, o irmão mais velho, “o rei da popularidade”, querido e elogiado pelos adultos e crianças. Ele era três anos mais velho que Beth e seu maior divertimento era fazer chacota da irmã o tempo todo, aliando-se aos outros meninos.
Quando tinha oito anos, Beth viu a primeira coisa que a encantou realmente. Era um cachorrinho recém-nascido de uma ninhada na casa da vizinha. Ela adorou o filhotinho e pediu para levar para casa. Seus pais, como sempre indiferentes a tudo o que dizia respeito a ela, deixaram o bichinho ficar, sem nenhuma reação.
Ela deu ao cachorrinho o nome de Fred e passou o dia brincando com ele. À noite, deixou-o na área de serviço, numa caixinha, numa caminha feita de pano. Fred choramingava muito, o que fez com que o pai de Beth resmungasse e dissesse que daria um fim no animalzinho. Até que ela saiu da cama, apanhou o bichinho e o levou para cama.
De manhã, quando Beth acordou, o filhotinho estava duro, morto, deitado ao seu lado. De nada adiantou quando sua avó disse que ele provavelmente já estava doente e que não era culpa dela. Beth concluiu que ter alguém a quem pudesse dar amor e atenção não era algo permitido a ela. Ficou triste e não aceitou quando a avó disse que lhe daria outro bichinho. – Ele morreria também – pensou a menina. E ninguém falou mais sobre o assunto.

A primeira amiga de verdade que Beth teve foi aos 11 anos. Mira era o nome dela. Tinha um ano a mais do que ela e era também uma criança solitária.
Foi Mira quem tomou a iniciativa de se aproximar, um dia, durante o recreio do ginásio onde estudavam. Beth, de início manteve-se arredia, mas, aos poucos, percebeu que as duas tinham muito em comum.
E foi um mundo de maravilhas o que ela descobriu com Mira. De cumplicidade, companheirismo, segredos compartilhados, atenção, respeito e amizade. As duas se fechavam naquele casulo só delas e ignoravam as chacotas, o desprezo, a frieza e todas as outras agressões do mundo lá fora. Foram os melhores anos da vida de Beth.
Aos 13, Beth já atraía a atenção de alguns meninos, assim como sua amiga Mira. Mas as duas preferiam ficar horas juntas, passeando, conversando, trocando suas confissões e impressões sobre o mundo.
Foi uma noite em que os pais de Mira haviam saído para jantar e Beth tinha ido dormir na casa dela que mais marcou a amizade das duas. Elas conversavam sobre como seria beijar um garoto e faziam mil elocubrações a respeito. Riam de dar gargalhadas e sair lágrimas só de pensar em todo o tipo de maluquices sobre como seria a sensação do primeiro beijo.
Beth estava feliz como nunca se sentira. Então, num súbito gesto puro de carinho, aproximou seus lábios da boca de Mira e a beijou. Foi um beijo doce, longo e gostoso. Uma entrega sem restrições e sem culpa em que ela sentiu como se sugasse todo o afeto de Mira para dentro de si, enquanto dava tudo o que tinha de mais bonito de sua alma para ela.
A porta do quarto se abriu. Eram os pais de Mira que haviam chegado em casa. Houve gritos, acusações, repreensões e palavras muito duras. Beth dormiu aquela noite num quarto separado de Mira e, pela manhã, os pais dela contaram tudo aos seus.
Os pais de Beth não levaram muito a sério aquilo. Acharam que era coisa de criança tola e esquisita. Mas os pais de Mira proibiram-na de vê-la e até mudaram a garota de escola. Foram dias e noites difíceis para Beth.
Cerca de um mês depois, soube por coleguinhas da escola que Mira havia pulado da sacada do apartamento. 14 andares. O mesmo número de anos de vida de Mira.
Beth não foi ao enterro. Tinha medo de possíveis olhares acusatórios dos pais de Mira. Tinha medo que os olhares só confirmassem a imensa culpa que sentia. Que ficasse claro a todos que estivessem ali à volta que Beth era uma espécie de ser amaldiçoado, a quem o amor era algo proibido por Deus. Daquele dia em diante, Beth passou a ter certeza de que se amasse alguém todo o tipo de mal poderia sobrevir a essa pessoa. Seu amor poderia provocar a morte.
Sentia muita dor e não tinha com quem compartilhar. Achava que aquilo poderia fazer com que ficasse doente ou algo assim, mas não tinha o que fazer.

Não lembrava ao certo se tinha ouvido de alguém ou lido em algum lugar a história de uma garotinha de seis anos cuja mãe havia morrido. A família escondeu da menina o fato durante anos, achando que era o melhor para ela. Diziam que a mãe tinha ido fazer uma longa viagem.
Até que um dia, aos 10 anos, a garota brigou com a babá e disse coisas cruéis à moça. Como vingança, a babá contou-lhe que a mãe havia morrido e que ela era a única “boba” que não sabia disso. Naquela noite, todos os cabelos e pelos da menina caíram e nunca mais voltaram a crescer.
(Continua – ver os outros posts da série Inventários)

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

IMPERMANÊNCIAS 5


Teus Olhos

Voz de roçar de asas,
Riso de água cristalina,
Viajo pelos teus olhos,
Percorro a delicada
Paisagem do teu corpo.

Minha alma irmã,
Minha alma,
Estende tuas raízes
Por sobre o meu peito,
Festa de nuvens,
Campo de trigo
Tremulando ao vento.

Minha alma,
Minha alma irmã,
Céu azul aberto
Barulho do mar,
Pergunto se quando,
Num breve descuido,
Momento de alegria,
Fechares teus olhos,
Será que eu deixarei de existir?

Wilson Gasino

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

IMPERTINÊNCIAS 5


Música de A a Z

De Alceu Valença a Zélia Duncan, de Arrigo Barnabé a Zeca Pagodinho. O site Música de A a Z, do jornalista Marcos Venâncio, é uma mina de ouro para quem gosta de boa música. Alguns discos inclusive só foram lançados em vinil.

Muitas raridades, passando por jazz, blues, clássicos, MPB, rock e até música angolana. Para quem quiser conhecer, aí vai o link: http://www.venancio.110mb.com/ .


Worldometers

Outra dica do mestre Venâncio: o site de estatísticas em tempo real Worldometers. Os tarados por números podem acompanhar, por exemplo, o crescimento da população mundial. Mas tem muito mais para quem souber garimpar. Ótimo pra jornalistas e insones crônicos:
http://www.worldometers.info/

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

INVENTÁRIOS 4


Ismael





(Continuação – ver os outros posts da série Inventários)


Beth conhecera Ismael há cerca de seis anos. Ela o achou bonito, embora normalmente não se sentisse atraída por homens que usam brinco. Também achou um pouco ruim o fato de ele morar ainda com os pais aos 30 anos de idade. E ela achou engraçado quando ele se apresentou:
- Chamam-me Ismael.
Ele explicou que essa é a primeira frase do livro Moby Dick, um dos seus preferidos e com o qual disse se identificar. Ismael era o nome do personagem narrador do livro e tudo acontecia à sua volta sem parecer envolvê-lo diretamente, como se ele fosse um eterno observador privilegiado de sua própria vida. Ahab, Starbuck, Quequeg, a baleia branca e os outros personagens flutuavam ao seu redor em suas lutas e buscas próprias e ele parecia não ser atingido nunca. Nem mesmo pelo duelo atávico do Capitão Ahab com o leviatã Moby Dick, metáfora do seu próprio inconsciente, que o acabaria arrastando para o fundo do oceano. Ismael sempre passava ao largo de tudo.
Mas Ismael tinha seus muitos encantos. Sua imaginação poderosa, sua alma de criança, sua poesia, sua alegria, sua leveza de sempre, e, principalmente, sua capacidade de ver a beleza das coisas, de se maravilhar com tudo.
- “Stupor mundi”, dizia ele, exercitando seus dotes de professor de filosofia - O “assombro do mundo”.
E tinha também a doçura de Ismael. Quase feminina, o que atraía muito Beth, já tão cansada da brutalidade dos homens comuns. Ela confiou tanto nele, logo de início, que foi a primeira pessoa para quem falou das visões e vozes. E ele achou aquilo muito engraçado. Nem pensou que ela era louca, nem nada.
E Ismael contou para ela a história do garoto que queria muito bater o recorde da vizinhança de ficar mais tempo debaixo d'água, sem respirar. Ele treinava muito, ficava horas praticando na piscina. Um dia, ficou até mais tarde no clube. Todo mundo foi embora e ele ficou ali, praticando, sozinho. E, numa dessas tentativas, forçou demais, perdeu a consciência e morreu.
- E o que é que isso tem a ver com as visões que eu tenho?
- Sei lá. Acho que eu lembrei disso porque queria dizer que você precisa ir fundo nisso pra descobrir o que é. Mas também precisa saber o seu limite. É isso.


(Continua – ver os outros posts da série Inventários)

domingo, 20 de janeiro de 2008

IMPERTINÊNCIAS 4


Sobre Eu Sou a Lenda, Ionescu e Saramago

Fui ver o filme “Eu Sou a Lenda” no cinema. Não é um grande filme, mas é um bom entretenimento e possibilita alguma reflexão. O tema não é novo: a resistência ao processo de desumanização. Desde Ulisses lutando para não virar porco nas mãos da feiticeira Circe, para poder continuar sua Odisséia, até os rinocerontes do teatro de Ionesco e as hienas de Bráulio Pedroso, bem como o Ensaio Sobre a Cegueira de José Saramago, muitas vezes foi revisitado o mito do ser humano que luta contra a bestialização. Um processo representado por algo que vem de fora e que encontra seu eco lá dentro.

Se olharmos à nossa volta, para a banalização da violência, para a brutalização dos sentimentos, para a cada vez maior e mais “justificada” redução do outro a objeto, para a limitação da Vida à satisfação gerada por prazeres fugazes e vazios, vemos que os vampiros lendários estão soltos por aí. Porque quando reduzimos o outro a objeto, sem direito à subjetividade e às suas próprias vontades, desejos e sentimentos, ele se torna simples instrumento ou obstáculo para as nossas satisfações.

Nesse processo, pouco importa se faço sofrer ou causo dano, desde que obtenha minha satisfação. É esse raciocínio que “justifica” o estupro, o latrocínio, o assassinato, a mentira e a traição. E é também esse raciocínio que oferece “alívio” à consciência para os crimes por atacado, como o desvio de recursos públicos, as ações lesivas aos consumidores e a destruição de recursos naturais. Nesses casos, as coisas também são facilitadas porque não são vistos os rostos, nem conhecidos os nomes.

É óbvio que é impossível o tempo todo considerar a alteridade, mas há uma simples palavra que possibilita ter uma medida sobre o quanto estamos considerando o outro em sua subjetividade: respeito. Isso implica em ver o outro como uma pessoa completa como se vê a si mesmo. Até mesmo o amor, sem respeito, pode ensejar posse, uso, invasão de limites e anulação. Vai aí embaixo uma música, de uma banda chamada Marillion, que fala algo sobre o tema:


AFRAID OF SUNLIGHT
(http://uk.youtube.com/watch?v=nVPE6EOreFw)

Drive the road to your surrender
Time comes around... out of my hands
Small boats on the beach at the dead of night
Come and go before first light

Leave me running in the wheel
King of the world
How do you feel?
What is there to feel?

So how do we now come to be
Afraid of sunlight?
Tell me girl why you and me
Scared of sunlight?


Been in pain for so long
I can't even say what hurts anymore
I will leave you aloneI will deny
I will leave you to bleed
I will leave you with your life

So how do we now come to be
Afraid of sunlight?
Tell me girl why you and me
Scared of sunlight?

All your spirit rack abuses
Come to haunt you back by day
All your Byzantine excuses
Given time, given you away

Don't be surprised when daylight comes
To find that memory prick your thumbs
You'll tell them where we run to hide
I'm already deadIt's a matter of time

So how do we now come to be
Afraid of sunlight
How do we now come to be
Afraid of sunlight

Day-Glo Jesus on the dash
Chalk marks on the road ahead
Friendly fire in hostile waters
Keep the faith
Don't lose your head
So how do we now come to be?


O outro lado





Quase sempre a raiz da falta de respeito com o outro é a falta de amor para consigo mesmo. Afinal, já disse Jesus: “Amar o próximo como a si mesmo”. Se não me amo e me respeito, como posso amar o outro? A culpa e o perfeccionismo são sintomas dessa falta de amor próprio. Os filmes “Desejo e Reparação” e “O Caçador de Pipas” falam sobre isso.

Os dois tem estórias muito boas de erro e busca da reparação, da redenção, do auto-perdão. Cada um traz uma solução diferente para o problema e os dois mostram que há ainda mais beleza nas coisas profundas do ser humano. Também são muito bons como cinema. Têm uma pitadazinha de pieguice, mas dá pra encarar. Vale a pena ver.

sábado, 19 de janeiro de 2008

IMPERMANÊNCIAS 4



O Arthur se foi



Acordei com uma mensagem no celular: "(Luto) O Arthur se foi". Era do Reginaldo Araújo, velho amigo de infância, avisando que nosso amigo Arthur Hagedorn, da cidade de União da Vitória, interior do Paraná, morrera. A última vez que eu vi o Arthur foi entre o Natal e o Ano Novo, quando estive em União e fui visitá-lo no hospital, junto com o Reginaldo. Arthur lutava há cerca de sete anos contra um tumor no cérebro. Quando fizemos a visita ele já não conversava, ficava apenas ali deitado, sedado.

No final, nos conforta pensar que a morte veio como um descanso, para ele e para a família. Mas esse tipo de pensamento só serve de alívio para nós que estamos um pouco distantes. Para a família é sempre a perda daquilo que era e principalmente daquilo que poderia ter sido. Para o próprio Arthur também. Ele tinha pouco mais de 40 anos.



Viagem ao passado

Não pude ir ao enterro. São quase 3 mil quilômetros de Salvador a União da Vitória. Mas, de certa forma, caminhando hoje de manhã pela praia, pude viajar um pouco até lá para me despedir do velho amigo. Pude lembrar dos nossos tempos de adolescência, quando formávamos uma turma, Arthur, Reginaldo, eu, Adalberto (Padeiro) Manfredini, Edson (Canoinhas) Goya e outros tantos amigos. Das festas na Discoteca do Clube Aliança. De quando nos reuníamos na casa da Vana Gulicz ou da Júlia Araújo, junto com a turma toda das meninas e jogávamos baralho, dávamos risada e éramos muito felizes.

Lembro de um dia em que fizemos uma fritada de lambaris. Nós, os garotos, ficamos responsáveis por pescar os peixes e limpar, e as meninas fritariam os lambaris na casa na Vana, onde a turma iria se reunir.

Pescamos quase 100 lambaris e começamos a limpar, até que começaram as brincadeiras bobas de jogar peixe um no outro. O Reginaldo, como sempre, teve a pior idéia: jogar um peixinho dentro da camiseta do outro, nas costas, e dar um tapão em cima. Disgusting thing!

A bagunça foi tanta que caiu um peixe atrás da pia, num vão entre o tampo e a parede. Não havia como tirar de lá. O resultado é que a cozinha da casa da Vana ficou cheirando mal por muitos dias por causa daquele peixe e a mãe dela não deixou a gente ir lá por um tempo. Mas a gente se divertiu muito.



Rei e nuvem

E, no meio de toda essa bagunça, o Arthur sempre foi meio quieto, meio na dele. Não falava muito, mas era um companheiro sempre pronto pra tudo. Lembro que as meninas chamavam ele em segredo de "rei", numa referência ao lendário Rei Arthur. E realmente ele era um cavaleiro da Távola Redonda, um grande sujeito, um príncipe no relacionamento com todas as pessoas.

Sempre muito educado, sempre de bom humor, sempre positivo e também quase sempre desligado. O que fazia com que o Reginaldo volta e meia o chamasse de "nuvem", dizendo que ele sempre estava flutuando no céu e não com os pés no chão.

Pois é. E o Arthur se foi.

E agora ele é mais rei e mais nuvem do que nunca.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

INVENTÁRIOS 3


O encontro com o vazio

(Continuação – ver os outros posts da série Inventários)

A moça parada na porta com a chave na fechadura se chama Beth. Lisabeta, na realidade. O nome de sua avó paterna, imigrante que veio da Itália. Há dois dias atrás, ela estava sentada num bar conversando com um grupo de amigos e refletindo sobre como a sua vida chegara àquele ponto, como as coisas se complicaram daquela maneira, como, enfim, ela atingira esse estágio em que não sabia mais que rumo tomar.
Em meio ao grupo de amigos e a multidão que enchia o bar, Beth se sentia ao mesmo tempo acolhida pela tribo, mergulhada naquela sensação de pertinência e identidade transitória. E, ao mesmo tempo, sentia vontade de sair dali, fugir para algum lugar só e seguro, onde ela pudesse ser ela mesma, fosse o que isso fosse.
Olhou para a parede e logo atrás do balcão havia um pedaço marcado por um quadro que havia sido tirado dali. A parede, naquele lugar, tinha um tom mais claro, preservada que fora da ação da luz, do pó e da umidade. Beth já estivera naquele bar há algumas semanas, mas o quadro já não estava lá.
A noite anterior em que ela estivera no bar, que se chama Valentino, fora a noite em que vira Ismael pela última vez. E foi também a noite em que parou de achar que era brincadeira aquela coisa de visões e de falar com pessoas que não existem.
Duas noites antes de estar parada na frente da porta de casa, Beth ficara um bom tempo olhando a marca do quadro retirado da parede. Aquilo chamava demais a sua atenção. Tinha mais destaque do que todos os cartazes e os outros quadros com imagens fortes e cores berrantes.
E ela pensou: - Como pode uma ausência ser tão mais presente do que tudo ao seu redor? Esse vácuo agressivo e contundente. Essa janela para um nada mais concreto do que tudo o que é sólido e palpável. Como pode ser essa falta tão mais perturbadora, tão devastadora?
Sentiu que precisava descobrir o porquê de todo aquele vazio, a razão de se sentir assim. Foi naquela noite em que Beth decidiu entrar no seu próprio vazio.
Enquanto ela pensava nisso, ouvia distraidamente dois amigos comentando a história de uma garota rica que havia se apaixonado por um traficante pobre da favela. Ele batia nela, era grosseiro, ruim, saía com outras mulheres, a desprezava e humilhava. E, no entanto, a garota era louca por ele, desobedecendo a família que fazia tudo por ela.
- O pai dela deu pra ela um apê e um carro super-equipado pra ela largar do carinha. Mas ela não deixou dele.
- Essa é uma história estranha.
- Até que não...
- Como você explica isso, então?
- Ele é o único que diz “não” pra ela.

(Continua – ver os outros posts da série Inventários)

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

IMPERMANÊNCIAS 3


The big eye of the big guy


Passando por Curitiba, não deu para resistir a uma visita ao Museu Oscar
Niemeyer
, ainda mais que o grande arquiteto acaba de completar 100 anos. O MON já é incrível só pela sua construção: são mais de 17.700 metros quadrados de áreas expositivas. Conta sempre com ótimas exposições itinerantes e um acervo permanente que inclui nomes nacionais como Tarsila do Amaral, Portinari e Ianelli além dos paranaenses Miguel Bakun, Alfredo Andersen, Theodoro de Bona e muitos outros.






Neste mês de janeiro, tem várias mostras bacanas, como “A Arte no Tempo e no
Espaço”, Rodolfo Morales, Kurt Schwitters e do próprio Niemeyer. Para quem quiser saber mais um pouco, aqui vai o link: http://www.museuoscarniemeyer.org.br/ .

domingo, 13 de janeiro de 2008

IMPERTINÊNCIAS 3

A carta do Mago, Perseu e a Medusa


O Mago é a carta de número 1 do Tarô. É o início da jornada do herói. O começo da viagem da alma humana em direção à sua individuação. É o primeiro impulso direcionado, o nascimento do ego, a primeira experimentação da consciência, o primeiro contato com o mundo material. Ao lado, vemos a representação do Mago no Tarô de Marselha.
Ele tem o infinito na cabeça, a varinha mágica na mão esquerda (madeira = paus = fogo = conhecimento = uso da intuição, da imaginação, do intelecto) e uma moeda na mão direita (ouro = terra = riqueza = sabedoria em usar os recursos da natureza e do próprio corpo). Sobre a mesa, à disposição, tem recipientes com líquido (copas = água = emoção elaborada = sentimento = paixão) e uma faca (espada = ar = conhecimento técnico = trabalho = esforço = uso de ferramentas = aprendizado pela experiência).

A jornada do herói é um tema recorrente da mitologia mundial. Representa o nascimento da consciência diferenciada, a proposição da mudança, a tomada do destino nas próprias mãos – em contraposição ao agir de rebanho da multidão.

Um exemplo clássico da jornada do herói é o mito de Perseu, que, em sua “noite escura da alma” tem que enfrentar a terrível Medusa. O monstro, de corpo de mulher e cabeça cheia de serpentes, simboliza aquilo que temos de mais pavoroso em nosso inconsciente. As emoções, pulsões, traumas, medos e desejos incontroláveis e inconfessáveis. Aquilo que o nosso ego consciente não admite olhar de frente.
Conta o mito que todo aquele que olhava a Medusa diretamente nos olhos morria petrificado. Por isso mesmo, simbolicamente, Perseu precisa usar seu escudo como um espelho para “enfrentar” a criatura e cortar sua cabeça.
De dentro dela, que estava grávida do próprio deus Posseidon (outro símbolo do insconsciente), saem Pégaso, o cavalo alado, que representa a imaginação criativa, e Crisaor, o criador de monstros, que encarna a capacidade de nossa psique de gerar quimeras.
Nessa jornada de auto-descoberta, Perseu se torna um indivíduo melhor, mais livre, mais conhecedor de si mesmo e de seu papel no mundo. Torna-se apto a ser o herói, o senhor do seu próprio destino porque conhece a fundo as forças interiores que o movem e que movem o Mundo (a última carta do Tarô, de número 21).

O mago, então, na luta contra o princípio conservador que o atemoriza (olhar para a esquerda, o passado), terá que buscar forças e conhecimento em si mesmo experimentando o mundo à sua volta. É uma longa jornada.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

INVENTÁRIOS 2


Preto no Branco

O carvoeiro trabalha.
A parede escura,
À luz da fornalha,
Lhe parece impura.

Com um pedaço de carvão
Risca a negra parede,
E, sob o traço de sua mão,
A grossa crosta se desprende.

Muito estranho
Isso lhe parece,
Preto com preto e
O branco prevalece.
Wilson Gasino

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

IMPERTINÊNCIAS 2


Cachoeiras

Banho de mar é muito bom. Mas banho de cachoeira tem sempre algo de especial. É um energizante e parece que leva todos os maus fluidos embora. Nada melhor do que terminar um ano e começar o outro com banho de cachoeira.
A região de União da Vitória, na divisa dos estados do Paraná e Santa Catarina, tem a Rota das Cachoeiras, com dezenas delas. Escolhi fotos de algumas para mostrar.

Cachoeira Cintura de Noiva


Cachoeira do Rio Espingarda

Cachoeira do Rio dos Pardos

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

IMPERMANÊNCIAS 2


Leituras de férias

Uma coisa maravilhosa das férias é poder colocar a leitura em dia. Eu tinha vários livros me esperando e não tinha tempo para me dedicar a eles como deveria, já que a correria no jornal foi muito grande em novembro e dezembro. Principalmente pela aceleração do processo de convergência de mídia, o que me obrigou a me dedicar a leituras mais técnicas nesse período. Para matar a vontade, tenho devorado livros com uma velocidade impressionante para um período movimentado de festas, viagens, caminhadas no mato e banhos de cachoeira. Vamos à lista:

Momo e o Senhor do Tempo

Comecei com “Momo e o Senhor do Tempo”, de Michael Ende, que ganhei de Alane. Uma bela fábula sobre o uso do tempo e o quanto a gente fica economizando a vida, como se ela pudesse ficar guardada em algum lugar nos esperando. Tem passagens belíssimas, como a estória da princesa dos espelhos.






Mr. Vertigo

Depois terminei “Mr. Vertigo”, do Paul Auster, na versão em inglês, que emprestei de Greice. Muito bom. Também uma fábula. Esta sobre o american dream no Século XX e, afinal, os sonhos de todos nós.







As 1001 noites


Falando em fábulas, em seguida reli os contos das "1001 Noites", recomendado e emprestado especialmente pela Luciane. Sempre muito bom. Dá para ver o quanto esses contos influenciaram e influenciam o nosso imaginário até hoje.

Código da Vida

Estou lendo agora “Código da Vida” do jurista Saulo Ramos, que ganhei da Nani no Natal. Um livro muito interessante. Misto de memórias e thriller de suspense. Ele conta vários episódios interessantes de sua carreira, alguns fundamentais na história do Brasil, como a renúncia de Jânio, a posse de Sarney após a morte de Tancredo e o impeachment de Collor. Paralelamente, conta como resolveu, junto com a equipe de seu escritório de advocacia, o caso que considera o mais cabeludo de sua carreira. Vale muito a pena.



Coincidência

Um fato interessante é que Saulo Ramos viaja em vários devaneios pelo livro. Num deles, falando do seu vício do cigarro, cita Sir Walter Raleigh, um misto de comerciante e pirata britânico, responsável por introduzir o fumo no dito mundo civilizado do início do século XVII. O fato é que o rei inglês Jaime I, conta Saulo Ramos, revelou-se o primeiro anti-tabagista da história, inclusive escrevendo contra o novo “mau costume oriundo da América”. Por fim, Jaime I mandou decapitar Walter Raleigh nos idos de 1618.

Uma interessante coincidência aí é o fato de Paul Auster também ter citado em seu livro Sir Walter Raleigh e claramente ter buscado inspiração nele para o nome de seu personagem principal Walter Claireborne Rawley, o garoto que aprende a voar.

Bruno e os Elefantes Marinhos

Ah, também li nesse período “Bruno e os Elefantes Marinhos”, do gaúcho Luigi Del Re. São crônicas de um pai que perdeu seu filho mais companheiro. Uma história real e emocionamente. Fiquei imediatamente sensibilizado, porque o meu filho mais velho se chama Bruno e faz 16 anos em 2008. A mesma idade com que o filho do autor morreu.






Filhos

Embora meus filhos Bruno, Bernardo e Giovanna já há vários anos não morem comigo (desde a minha separação da mãe deles), temos uma ligação muito forte. Passei junto com eles boa parte destas férias.

No último Dia dos Pais, Bruno me mandou um longo e-mail lembrando de todas as coisas que fazíamos juntos quando morávamos em Curitiba e, depois, nos finais de semana em que eu ficava com eles em Londrina, no Norte do Paraná. Era para me consolar da distância e eu me senti muito feliz.

Ele terminava com a frase: “- Deus te abençoe, pai”. E eu, emocionado, respondi ao e-mail de pronto: “Ele tem me abençoado, meu filho, você é uma grande prova disso”.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

INVENTÁRIOS


Uma porta no tempo




Os dedos dela seguram a chave. E o frio corpo de metal está dentro da fechadura. Por um instante, ela não se move, parada do lado de fora da porta. É um quadro. Uma fotografia. Cena estática. Imóvel. Contida.
Quem a vê assim, não pode discernir se a chave girará no sentido horário ou anti-horário. Se ela está abrindo ou fechando a porta. Saindo ou chegando. Ela parece pensar em algo e é curioso como uma vida inteira pode passar diante dela nesse breve momento.
Talvez ela esteja tomando uma grande decisão. Talvez apenas esteja distraída.
E esse instante parece parado no tempo. Um hiato entre o passado e o futuro. Um simples elo de uma enorme cadeia de eventos, que pode ser assistida num sentido ou no outro. O que a move é o olhar do observador. E, nesse instante, nosso olhar está fixo sobre a cena da porta.

O tempo parou para ela, como na história daquela mulher na Idade Média, que só queria ajudar os outros, mas acabou sendo condenada à fogueira. O tempo parou para ela quando a fogueira começou a queimar. E ela, desesperada de medo e dor, resolveu invocar o próprio demônio, com quem ela nunca havia tratado e de quem havia sido acusada pela Santa Inquisição de ser amante. Rogou, propôs, fez comércio da própria alma. Mas o fogo não abrandou. O fogo não trai o fogo. O fogo nada cria. O fogo só transforma.
(Continua – ver os outros posts da série Inventários)

IMPERTINÊNCIAS


A figura do Louco no Tarô


O Louco é ao mesmo tempo a primeira e última carta do Tarô. Figura arquetípica do bobo, do sonhador, está presente em quase todas as culturas. Ele representa o intervalo entre aquilo que está terminando e aquilo que está começando. Toda a gama de possibilidades do caos, já que ainda não há qualquer força impulsionadora ou direcionamento. Assim, tudo neste estado é possível. A figura mostra a representação do louco no baralho do místico Aleister Crowley.

IMPERMANÊNCIAS


O primeiro post - apresentação

Depois de muitos ensaios, resolvi começar hoje o meu blog. Tinha muitas idéias, mas pouco tempo e, principalmente, pouca noção de para quem realmente eu iria escrever. Bom, depois de ver os blogues de vários amigos, decidi escrever pra mim mesmo e assim talvez conseguir agradar quem passar por aqui. Os posts virão sempre com um “chapéu” indicativo. Em “IMPERMANÊNCIAS”, vou comentar coisas do dia-a-dia. Em “IMPERTINÊNCIAS” vou falar de coisas em geral, que vão desde jornalismo até culinária, passando por filosofia, esoterismo, literatura e outras coisas nem sempre afins. E, last but not least, em “INVENTÁRIOS” virão textos de ficção que fazem parte do novo romance no qual estou trabalhando. Bom, quem quer que tenha se arriscado até aqui, seja bem vindo e espero que sua breve estada (e possível retorno) lhe traga algo de bom.