Come chocolates, pequena

(Continuação da série de posts “INVENTÁRIOS”)
Já fazia quase seis meses que Beth não chamava por Bárbara à procura de respostas para suas perguntas. Nos últimos tempos, ela andava confusa até sobre quais seriam as suas perguntas.
Naquela noite, Beth acreditava que tinha uma pergunta boa de verdade e se arriscou a chamar Bárbara, a mulher que lhe aparecia, como se fosse do nada, com respostas para tudo.
- Quanto tempo? Achei que não precisava mais de mim – disse a mulher de vermelho, surgindo, de repente, sentada nos pés da cama de Beth.
- Pois é. Eu andava um pouco confusa. Não tinha pergunta. Ou tinha muitas. Não sei...
- E agora, você tem?
- Mais ou menos...
- Sim ou não?
- Tenho sim. Eu quero saber o que é o amor?
- Hmmmmm...
- Isso já a resposta? - Perguntou Beth
- Hahaha. Estou aprendendo a gostar e a achar engraçadas as suas ironias. Realmente a sua pergunta não é simples. A resposta dela, na realidade, é fácil, mas é difícil traduzi-la no seu nível de entendimento.
- Como assim?
- Você enxerga o amor como uma coisa só, única, constante, uniforme e coerente. Mas não é.
- Não existe um amor, mas todos os amores. Cada amor é diferente do outro e em cada momento o amor muda e se torna diferente. Pode evoluir, se tornar melhor, ou pode voltar atrás e se tornar cada vez mais egocêntrico e egoísta.
- Entendo. Mas porque é que a pessoas falam o tempo todo no amor, o amor isso, o amor aquilo, só o amor constrói e salva e o cacete a quatro... E depois a gente fica sentindo falta disso na vida da gente...
- Faz falta sim. Mas não do jeito que você imagina ou espera. Você quer tanto que uma coisa seja de determinada maneira, planejou tanto ela, construiu tantas imagens e expectativas baseadas nas coisas que você leu, ouviu ou assistiu, que qualquer coisa diferente, mesmo que seja melhor, não vai servir.
- Hmmmm, digo eu, agora...
- Você fica esperando um sorvete de chocolate. Colocou na cabeça que o que vem é um sorvete de chocolate. Está tão convencida de que o que você precisa e o que vai te fazer feliz é um sorvete de chocolate que, venha o que vier, seja o melhor sorvete, o mais gostoso do mundo, e você vai achar ruim. Simplesmente porque não é de chocolate.
- Mas o que eu faço, então, paro de tomar sorvete?
- Deixe o sorvete vir até você. Pode ter expectativas, mas nada tão duro, restritivo e inflexível. Deixe o paladar sentir, aprecie o momento, experimente, descubra a delícia da surpresa, do inesperado, do novo, do nunca experimentado.
- Você devia trabalhar com publicidade. Iria vender muito sorvete. Rsrsrs.
- Hahahaha. Gostei da idéia.
- Só mais uma pergunta: porque é que a gente cria essa expectativa de sorvete de chocolate?
- É o medo do novo. Um medo de que fuja do nosso controle. De que venha algo muito ruim, ou então, algo tão bom que a gente goste tanto que não queira mais parar.
- Interessante. É uma idéia bem estimulante.
- É verdade. O novo é sedutor mesmo. Quase tanto quanto o comodismo.
- Comodismo?
- É, o medo de se perder o que se tem, por menos que seja, leva a essa acomodação. E vou te dizer: a submissão pode, muitas vezes, ser mais sedutora do que o poder.
- Não sei se eu entendi isso.
- Não precisa. O importante é que você entendeu a coisa do sorvete de chocolate.
- Sei. O amor é um sorvete de chocolate que pode ser de outros sabores: cajá, mangaba, biri-biri, graviola, coco e até de nata.
- Mais ironias...
- Não posso evitar.
- Bom, agora eu tenho que me despedir de você. Essa foi a sua última pergunta.
- Como assim? É como aquelas coisas de gênio das Mil e Uma Noites? Tem número certo? Eu não sabia...
- Acho que agora você tem condições de responder por si mesma as suas perguntas. Não precisa mais da minha ajuda. Adeus.
- Mas eu, eu... Lá foi ela. Me deixou falando sozinha de novo. Bárbara. João. Sei lá. Que coisa. Alucinação mais doida. Eu devia ter perguntado os números da mega-sena, ou o final de Lost, ou porque o Brasil perdeu a Copa de 1998 na França. Ou, sei lá, devia ter perguntado quem ela ou ele era...
(Continua na série de posts “INVENTÁRIOS”)