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quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

IMPERTINÊNCIAS 62


Interiores



Fechado em sua concha áspera, mas sem nunca deixar de ouvir o rugido do mar revolto lá fora, Antonio prosseguia seu trabalho no casarão. Fazia suas refeições em separado. Muitas vezes, até, fechado em seu quarto, conversando apenas com Laura, quando queria algo da casa, e com Augusto, nas horas de trabalho. Nestes dias não via Letícia, nem Theodoro, nem Arthur, numa vida quase monástica.


Lia muito. Levava os jornais para o quarto à noite e pegava muitos livros da imensa biblioteca de Augusto Orsini. Mas fugia de temas que o fizessem pensar demais. Gostava de biografias antigas e livros de história, fazendo do passado antigo a maior parte do seu presente.


O inverno de Curitiba era frio e seco, com belas manhãs de sol. Nos finais de semana, saía a caminhar pela cidade. Andava um pouco de bonde. Via centenas de rostos diferentes. Eram pessoas que viviam e quantas - ele pensava - não estavam mortas e enterradas como ele. Quantas haviam escolhido, como ele, aquele caminho. E quantas, também como ele, não haviam sido levadas a isto pela vida.


Mas a maior parte das pessoas parecia feliz e, portanto, não sentia a mesma dor incômoda. Que tipo de droga anestésica milagrosa - pensava - poderia fazer isso? Será que havia alguma forma de apagar isso, como quem apaga um lampião de gás. Seria conformismo? Será que todos já sabiam mesmo que a vida era apenas uma dor transmitida de geração em geração, ou ele era o único no mundo a se sentir daquele jeito?


Parou em frente à banca de jornal e leu algumas manchetes. Havia muita desgraça e nenhuma notícia que pudesse considerar boa. Pensou que havia gente com muito mais problemas e dor do que ele. Havia morte, doenças, miséria, guerra, violência e o roubo deslavado da política. Havia desencontros, filhos que perdem os pais, amores que se separam, fortunas que se dissolvem da noite para o dia, desgraças de todo o tipo. Havia fome, medo, desesperança e solidão. Mas não havia ninguém que sentisse o que ele sentia. Não havia ninguém que se sentisse tão inútil e tão perdido em sua própria vida. Pelo menos era o que os jornais diziam.


(trecho do romance inédito "O Castelo da Não Existência")


quinta-feira, 19 de junho de 2008

IMPERMANÊNCIAS 39


O Castelo da Não Existência



Eram apenas cinco os degraus que levavam à grande porta da casa imensa, que quase tomava conta de todo o quarteirão. O homem subiu os dois primeiros e parou. Os degraus eram altos e dali ele via o pôr do sol por entre as árvores que cercavam os fundos da propriedade. Tudo durou menos de um segundo e logo ele subiu os três últimos, chegando à velha porta de madeira maciça.
O som da campainha pareceu familiar, mas ele não conseguiu recordar o que era. Tinha mais de trinta anos e um rosto ainda juvenil, embora o seu olhar distante não tivesse mais idade naquela manhã de outono de 1938. Às vezes, algumas lembranças percorriam rapidamente a memória, mas ele já não recordava mais como chegara até ali.
Não lembrava que caminhos estranhos o haviam levado àquela velha escada de pedra, àquele pôr do sol, e àquela grande porta de madeira. Já não lembrava mais o ponto onde as memórias haviam deixado de fazer sentido. Em que momento exato ele havia deixado de acreditar nas coisas. O lugar onde havia enterrado todos os seus sonhos e esperanças, como se fossem o tesouro de um velho pirata que sabe que vai morrer.
Uma senhora com aspecto solene de criada abriu a pesada porta, enquanto o sol sumia no horizonte. Pensou em sorrir, mas não fazia sentido.
- Sou Antonio Trencavel - apresentou-se - o sr. Augusto me aguarda.
A velha criada, sem perder a solenidade, convidou-o a entrar e sentar-se na ante-sala. Sentou num sofá de couro antigo e, por um momento, examinou os quadros colocados na parede à sua volta. O maior deles retratava um homem já de idade avançada, vestido com muita elegância. E no quadro, o homem, sem que isso fizesse qualquer sentido para Antonio, sorria.





(Obs.: Este o primeiro capítulo do romance O Castelo da Não Existência, ainda inédito. Foi o primeiro romance que escrevi e tem um sabor todo especial para mim. Ainda pretendo publicá-lo, mas, se não conseguir, postar o primeiro capítulo aqui no blog já é um gostinho.)