quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Intermezzo 3


Nossas noites



Minha ansiedade
Descansa no teu corpo
E o assombro do mundo
Vira sonho e me sonha.

Me esvaio na delícia
Que o cheiro doce
Da tua pele promete
Ninando meu desejo.

Tudo se resume
Ao teu respirar
E o tempo repousa
Distraído e feliz.

Quero o mergulho,
O beijo, o colo e o abraço
Na leveza preguiçosa
Das nossas noites.

Wilson Gasino

terça-feira, 23 de setembro de 2008

INVENTÁRIOS 50


Eppur si muove



(Conclusão da série de posts “INVENTÁRIOS)


O tempo pareceu parar para Beth, ali, na frente da porta, com a chave na fechadura. Por quantas e quantas vezes ela tinha repetido aquele mesmo gesto sem pensar no que estava fazendo? Nesse instante, hiato entre passado e futuro, os olhos do universo pareciam fixos naquela cena, naquela porta, naquele momento que nada mais era do que um elo numa infinita cadeia de eventos.

A vida inteira de Beth parece passar diante dos seus olhos, como em todos os clichês sobre os quais ela já ouvira falar. E, quem passasse por ali, efetivamente não saberia se a chave giraria no sentido horário ou anti-horário, se Beth estava fechando ou abrindo a porta. Se ela estava saindo ou chegando.

Embora aquele fosse apenas mais um elo na cadeia, Beth poderia se perguntar se ele já tinha um sentido pré-determinado, ou se ele ainda poderia ser mudado. Lembraria, então, de Ismael dizendo que é necessário sempre crer na dúvida e que todo o estado de indecisão é uma reafirmação da nossa liberdade.

Lembrar de Ismael vinha sendo difícil para Beth e a morte dele tinha enchido sua cabeça de questionamentos. Havia uma parcela muito boa e significativa de sua vida que tinha sido vivida ao lado dele. E Ismael era a única testemunha desses acontecimentos.

Beth sentia essa parte de sua vida se esvaindo. Se Ismael não estava mais ali, quem é que poderia lhe lembrar, lhe dizer que tudo aquilo havia sido verdade? Dar sentido a todas as coisas, guardá-las e compartilhá-las para sempre?

Quem diria a Beth o que ela sentira e quem ela era? Quem mais lhe garantiria que tudo tinha sido real e não apenas imaginação ou sonho? Beth tinha muito medo de esquecer e perder tudo isso e a única alternativa era a fragilidade de sua própria memória.

Havia ali sentimentos e idéias que Beth não sabia como exprimir. Ela lembrava das aulas de italiano e da dificuldade que tinha de dizer algumas coisas, dada a limitação de vocabulário. Fazia ajustes, analogias, aproximava. Mas, muitas vezes, a falta de conhecimento da língua limitava sua expressão.

Naquele momento, Beth sentia aquilo em relação à sua própria língua materna. Queria pensar, dizer muitas coisas, mas não havia palavras que permitissem até mesmo a organização dessas idéias. Havia coisas que ela não conseguia dizer nem para si mesma.

Alguns minutos antes de chegar ali, Beth imaginara quanta coisa poderia ter dito ou pensado, se tivesse palavras.

Talvez – imaginara Beth – eu não seria quem eu sou e, assim, jamais estaria aqui ou pensaria sobre isso. Lembrou do paradoxo do mentiroso, do qual Ismael sempre falava. Era a brincadeira do sujeito que afirma: - Eu sempre minto.

Assim, pensara Beth, fica provado que a atitude pode influenciar a essência, e o fim pode influir no começo. O futuro, então, não seria determinado, podendo ser mudado não só através do presente, como, também, do passado.


O tempo queimava por dentro de Beth e ela pedia que o fogo se acalmasse. Mas o fogo não abrandava. O fogo nada cria. O fogo só transforma. Porque o tempo que nos resta, pensara Beth, ainda não existe.


E Beth permanece ali. Contida. Imóvel. Cena estática. Uma fotografia. Um quadro. Por um instante, ela não se move, parada do lado de fora da porta. E o frio corpo de metal está dentro da fechadura. Os dedos dela seguram a chave.


FIM/INÍCIO

domingo, 21 de setembro de 2008

IMPERMANÊNCIAS 50


Nouvelle Vague




“Não é o tempo, nem o cansaço que se deve temer no amor, mas uma impressão de insegurança, um estado de distração...
Esquecemos que esse ser encantador é efêmero, pensamos nele como um verão que voltará e perdemos dias maravilhosos.”

(extrato do filme Nouvelle Vague, de Jean-Luc Godard)

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

IMPERTINÊNCIAS 50


Fotogenia eleitoral

Em tempos de corrida eleitoral, com as ruas sendo invadidas por cartazes, panfletos e carros plotados cheios de sorrisos forçados, frases feitas e olhares vagos, a reflexão de Barthes sobre a construção da imagem dos candidatos se mostra ainda atual:

Certos candidatos a deputado ornam com um retrato o seu prospecto eleitoral. Isto equivale a supor que a fotografia possui um poder de conversão que se deve analisar. Para começar, a efígie do candidato estabelece um elo entre ele e seus eleitores; o candidato não propõe apenas um programa, mas também um clima físico, um conjunto de opções cotidianas expressas numa morfologia, um modo de vestir, uma pose. A fotografia tende, assim, a restabelecer o fundo paternalista das eleições, a sua natureza "representativa", desvirtuada pelo voto proporcional e pelo reino dos partidos. Na medida em que a fotografia é elipse da linguagem e condensação de todo um "inefável" social, constitui uma arma antiintelectual, tende a escamotear a "política" (isto é, um conjunto de problemas e de soluções) em proveito de uma maneira de ser, de um estatuto social e moral (...).
(...) O que é exposto através da fotografia do candidato não são seus projetos, são suas motivações, todas as circunstâncias familiares, mentais e até eróticas, todo um estilo de vida de que ele é, simultaneamente, o produto, o exemplo, e a isca. É óbvio que aquilo que a maior parte dos nossos candidatos propõe através de sua efígie é uma posição social, o conforto especular das normas familiares, jurídicas, religiosas,a propriedade infusa de certos bens burgueses(...) O uso da fotografia eleitoral supõe cumplicidade: a foto é espelho, ela oferece o familiar, o conhecido, propõe ao leitor a sua própria efígie, clarificada, magnificada, imponentemente elevada à condição de tipo. É, aliás, esta ampliação valorativa que define exatamente a fotogenia: ela exprime o eleitor e, simultaneamente, transforma-o num herói; ele é convidado a eleger-se a si próprio, incumbindo o mandato que vai dar de uma verdadeira transferência física: delega de algum modo a sua "raça"(...).

Roland Barthes - Mitologias

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

INVENTÁRIOS 49


Schicksalswende



(Continuação da série de posts “INVENTÁRIOS”)

Quando Ismael morreu, Beth já tinha saído de casa há mais de três semanas. Tinha deixado quase tudo para trás. Não quis levar nada dos móveis, eletrodomésticos e, principalmente, dos objetos de decoração. Deixou CDs, livros, louça, panelas, roupa de cama e a coleção da revista Bravo.
Deixou os DVDs dos seus filmes favoritos, os bichinhos de pelúcia, os souvenirs de viagem, o MP3, a máquina fotográfica e as almofadas em forma de nuvem. Deixou também as raquetes de tênis, as cortinas que tinha comprado em Feira de Santana e a rede que trouxe de Fortaleza. Não tinha disco de Pixinguinha nem livro de Neruda, mas tinha duas dúzias de porta-retratos legais e a toalha de mesa que ela e Ismael compraram juntos para o Natal de 2006. Ficou tudo lá.
As malas, as cadeirinhas de praia, as canecas coloridas que enfeitavam a estante e com as quais Beth gostava de tomar chá nos dias de chuva. O travesseiro ortopédico, os óculos de natação, as gravuras que a Nanda fez, a foto autografada com Marcelo Camelo e os tíquetes de cinema que Beth gostava sempre de guardar.
Ficou tudo na casa quando Beth saiu e agora não tinha mais ninguém para cuidar disso. O que fazer? Pegar tudo e levar para casa? Dar todas as coisas para alguém? Deixar tudo fechado para que os pais de Samuel dessem um fim?
Enquanto caminhava na direção da casa, Beth pensava no que fazer. Levar tudo com ela, dizia baixinho, seria carregar de volta para sua vida um monte de coisas que não queria mais.
Era seu passado. Tudo bem. Mas já não era mais seu presente. E trazia lembranças demais. Dores demais. O que fazer com isso? Apagar as lembranças? Zerar o passado? Isso não seria limpar o que ela era?
Lembrou do filme “Eternal Sunshine of the Spotless Mind” e ficou preocupada.
Essa coisa de passado sempre era difícil de lidar para Beth. Ela lembrava da metáfora que a terapeuta uma vez usara. Ela dissera que o inconsciente era como o fundo do mar, que a gente mergulhava em sonhos e pensamentos e, de vez em quando, trazia as coisas lá do fundo para cima. Seres abissais monstruosos. Mas também valiosos tesouros. Lembranças, sonhos, devaneios, insights.
Às vezes, pensava Beth, quando acontecia algo muito forte, era, então, como uma tsunami. A onda vinha arrastando tudo, revolvendo tudo e levantando milhões de coisas do fundo do mar. Era mais ou menos o que estava acontecendo agora.
Pensando nisso, ela tirou o chaveiro da bolsa e colocou a chave na fechadura, ficando parada por um breve momento.

(No próximo post da série “INVENTÁRIOS”, o final da estória de Beth e Ismael)

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

IMPERMANÊNCIAS 49


Cidades Invisíveis




As cidades e a memória - 2

(Italo Calvino)

O homem que cavalga longamente por terrenos selváticos sente o desejo de uma cidade. Finalmente, chega a Isidora, cidade onde os palácios têm escadas em caracol incrustadas de caracóis marinhos, onde se fabricam à perfeição binóculos e violinos, onde quando um estrangeiro está incerto entre duas mulheres sempre encontra uma terceira, onde as brigas de galo se degeneram em lutas sanguinosas entre os apostadores. Ele pensava em todas essas coisas quando desejava uma cidade. Isidora, portanto, é a cidade de seus sonhos: com uma diferença. A cidade sonhada o possuía jovem; em Isidora, chega em idade avançada. Na praça, há o murinho dos velhos que vêem a juventude passar; ele está sentado ao lado deles. Os desejos agora são recordações.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

IMPERTINÊNCIAS 49


Diálogo



Rita Apoena

E você, por que desvia o olhar?
(Porque eu tenho medo de altura.
Tenho medo de cair para dentro de você.

Há nos seus olhos castanhos
certos desenhos que me lembram montanhas,
cordilheiras vistas do alto, em miniatura.
Então, eu desvio os meus olhos
para amarra-los em qualquer pedra
no chão e me salvar do amor.
Mas, hoje, não encontraram pedra.

Encontraram flor.
E eu me agarrei às pétalas o mais que pude,
sem sequer perceber que estava plantada
num desses abismos, dentro dos seus olhos.
— Ah... " Porque eu sou tímida.

sábado, 6 de setembro de 2008

INVENTÁRIOS 48



Exoesqueleto



(Continuação da série de posts “INVENTÁRIOS”)

Nos filmes, desenhos animados, livros, gibis e estórias infantis, Beth sempre achou na imagem da borboleta saindo do casulo a metáfora mais clara da transformação das pessoas. Sempre acreditou nessa situação de metamorfose libertadora, de mudança profunda e avassaladora da alma. Sempre esperou por um momento desses em sua vida. Mas ele nunca veio.
Ela tinha a esperança de que, de uma hora para a outra, mudassem as coisas dentro dela com as quais tinha dificuldade em lidar. Mas ela permanecia sempre a mesma em sua essência com apenas pequenas mudanças. Algumas coisas se atenuavam, outras se salientavam, mas ela continuava sendo a mesma e, fundamentalmente, lutava contra os mesmos problemas. Por mais que o tempo passasse e ela enfrentasse novas situações na vida.
Beth pensava em casulos apertados e na deliciosa sensação que seria finalmente sair dali e abrir as asas ao vento. Na sensação de liberdade, de superação, de evolução e leveza que essa imagem lhe trazia.
E a borboleta era também um ser de beleza reconhecida e admirada por todos. Todas as pessoas gostam de borboletas – pensava Beth – e, depois, ninguém mais lembra que elas, um dia, foram lagartas horríveis.
Certa vez, um amigo jogou para ela as cartas do Tarô. Uma imagem lhe chamou muito a atenção: a da carta do Enforcado. Era um homem amarrado pelo pé, de ponta cabeça. Permanecia imóvel, como quem é apanhado numa armadilha.
Segundo o amigo, era a imagem do sacrifício necessário para se alcançar algo maior. Um sacrifício de angústia e espera, de antecipação e imobilidade, de dor e escuridão, de solidão e desespero, de forca e cruz.
Mas também, segundo o amigo, um sacrifício de superação, o momento necessário que precede a morte e a transformação do ser, a noite escura da alma que antecede o amanhecer.
Por algumas semanas, aquela imagem não saiu da cabeça de Beth e no dia em que Ismael morreu, ela lembrou bastante de O Enforcado. Mas, no cemitério, enquanto todos acompanhavam a cerimônia do enterro, uma outra imagem chamou sua atenção. Era uma casca de besouro. Vazia. Seca. Sendo levada por algumas formigas.
Lembrou das aulas de biologia do segundo grau. Era o exoesqueleto. Tipo de esqueleto de alguns insetos, que fica na parte exterior, diferentemente do que acontece com os animais vertebrados.
É um sistema de proteção muito eficaz contra predadores, intempéries e outros perigos que ameaçam a vida dos pequenos insetos. Um sistema eficaz e praticamente perfeito que possui apenas um senão. Por ser rígido, ele é limitado. Assim, quando o inseto cresce, fica preso em sua própria carapaça, que o impede de se expandir. Então, aquele que foi o seu mais importante mecanismo de proteção, se torna um entrave.
A solução providenciada pela natureza é o abandono do exoesqueleto para que cresça um novo, maior e mais perfeito, e que permita ao inseto evoluir. Mas há um risco: o novo esqueleto, que cresce por baixo do outro, é flexível por ainda um tempo após a perda do antigo. Assim, por um espaço breve de tempo, o inseto fica totalmente vulnerável.
É uma escolha difícil para ele. Abandonar a casca antiga e poder crescer, arriscando-se ao abrir-se pra o mundo, ou ficar limitado e morrer espremido dentro da antiga. De um lado, a segurança e a estagnação, de outro, o risco da dor e a possibilidade de crescer.

Mas a natureza não deixa dúvidas. Os insetos sempre abandonam os exoesqueletos.

Para a alegria das formigas.

(Continua na série de posts “INVENTÁRIOS”)

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

IMPERTINÊNCIAS 48

Mitos sobre os jornais


O jornalista espanhol Javier Errea, um dos principais designers de jornais do mundo na atualidade, enumera o que ele considera dez mitos da atualidade sobre o tema. Em sua apresentação no 7° Congresso da Associação Nacional de Jornais (ANJ), em agosto passado, em São Paulo, ele fez uma apresentação interessante sobre o tema, argumentando contra alguns dos paradigmas na área. Os mitos enumerados por Errea, que é presidente da SND - Society for News Design, são os seguintes (já com as respostas dele):

1) Os diários de papel estão morrendo
- É possível tomar uma aspirina e ficar adiando o fim ou procurar soluções que realmente dêem uma sobrevida aos jornais

2) Os jornais vão se tornar cada vez menores
- Isso é muito mais o comodismo das empresas e corte de custos, do que vontade do leitor

3) Os jovens não querem pagar por jornais
- Os jovens hoje têm mais dinheiro do que nunca. Mas eles só pagam pelo que efetivamente desejam

4) O futuro é digital, segmentado e dirigido por demanda
- E quanto à nossa missão básica de fazer jornalismo?

5) Os leitores decidem tudo
- Para fazer jornalismo é preciso tomar muitas decisões pelo leitor, antecipar seus questionamentos e surpreendê-lo positivamente

6) Jornais precisam de mais páginas e promoções
- Os diários cheios de páginas estão matando a si mesmos. E, afinal, queremos promoções para vender jornais ou jornais para vender promoções

7) As pessoas não gostam de ler
- Quantas páginas tem um livro de Harry Potter?

8) Temos que ir devagar nas novidades para não assustar o leitor
- Nós realmente conhecemos nossos leitores? Na realidade, somos muito conservadores

9) Novos formatos de publicidade não afetam a marca do jornal
- A publicidade já atravessou uma linha perigosa e que representa sim riscos para a marca

10) Tudo se resolve com o redesign de jornais
- Isso é uma febre, os consultores estão tirando a personalidade dos jornais

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

IMPERMANÊNCIAS 48


Soneto XVII

Pablo Neruda

No te amo como si fueras rosa de sal, topacio
o flecha de claveles que propagan el fuego:
te amo como se aman ciertas cosas oscuras,
secretamente, entre la sombra y el alma

Te amo como la planta que no florece y lleva
dentro de sí, escondida, la luz de aquellas flores,
y gracias a tu amor vive oscuro en mi cuerpo
el apretado aroma que ascendió de la tierra

Te amo sin saber cómo, ni cuándo, ni de dónde,
te amo directamente sin problemas ni orgullo:
así te amo porque no sé amar de otra manera

sino así de este modo en que no soy ni eres,
tan cerca que tu mano sobre mi pecho es mía,
tan cerca que se cierran tus ojos con mi sueño.