segunda-feira, 28 de abril de 2008

IMPERTINÊNCIAS 30


Falso Yakissoba





Foi num dia de falta de shoyu em casa que acabei inventando esse falso yakissoba. Gostei e ele se tornou um dos meus pratos favoritos. É fácil de fazer e muito gostoso, permitindo variações.

Ingredientes:

500 g de frango cortado em pedacinhos
200 g de brócolis
200 g de couve flor
200 g de cenoura cortada em rodelas
100 g de manteiga
300 g de macarrão japonês (pode ser miojo)

Preparo:

Coloque metade da manteiga numa panela e dê uma leve fritada no frango. Desligue o fogo e adicione o brócolis e a couve-flôr separados em galhinhos médios. Depois coloque a cenoura e então cubra com água. Ponha sal a gosto. Ligue de novo o fogo (baixo) e cozinhe até o frango e os vegetais estarem macios (mas antes de estarem se desmanchando – o ponto é quando o garfo entrar fácil e não partir o vegetal). Adicione o macarrão (se precisar, coloque mais um pouco de água quente para o macarrão poder cozinhar). Depois de três a cinco minutos, o macarrão está pronto. Escorra a água, coloque o restante da manteiga e dê mais uma leve fritada.

O rendimento é para três a quatro pessoas, mas é só aumentar na proporção os ingredientes para servir mais.

domingo, 27 de abril de 2008

IMPERMANÊNCIAS 30



Definitivamente, talvez








Fui ontem ver a comédia romântica “Três Vezes Amor” (Definitely, Maybe) e gostei bastante. Um filme leve sem ser bobo, com humor inteligente e um roteiro muito bem estruturado pelo próprio diretor Adam Brooks.





A história é simples: para explicar à filha de dez anos o porquê de estar se separando da mãe dela, o pai a conta a ela os três principais relacionamentos de sua vida.
Nesse retorno ao passado, ele acaba passando a limpo esses relacionamentos e descobrindo coisas diferentes sobre o que viveu.





Os casos vão sendo contados e vão recebendo os comentários da menina, o que rende boas risadas. Aliás, a garotinha Maya (Abigail Breslin de Pequena Miss Sunshine) é uma das grandes atrações do filme.




Rachel Weisz e Kevin Kline também estão bem, além da atriz Isla Fisher, que realmente é uma gracinha.





O roteiro traz uma série de idas e vindas do tipo Harry & Sally e tem final – até certo ponto – surpreendente. Principalmente para os brasileiros, para quem o título do filme é Três Vezes Amor. O título em inglês: “Definitely, Maybe” dá uma pista já no meio do filme de como vai acabar.


De qualquer forma, vale o ingresso, a pipoca, o refrigerante e o lencinho de papel.

sábado, 26 de abril de 2008

INVENTÁRIOS 29


Homúnculos


(Continuação da série de posts "INVENTÁRIOS")

Depois da fase de namoros destrutivos, Beth entrou numa etapa de relacionamentos superficiais. Foi no primeiro ano de faculdade, num período de descoberta de um sentimento de independência da família e de pertinência a um novo grupo que mudou sua maneira de ver a si mesma.
Sentia-se mais segura e não queria depender mais de ninguém. O grupo de amigos e colegas lhe dava o apoio, a aceitação e o afeto de que precisava. Bastava obedecer ao código silencioso de regras da turma, que ela conseguia o que mais queria.
Era divertido e abria as portas de um mundo novo para Beth. E o único custo era, em alguns momentos, abrir mão de ser ela mesma, fingir gostar de um ou outro filme ou livro, vestir-se de um jeito aprovado pelo grupo, portar-se como todos e ir aos lugares certos, que ela estava dentro.
Havia muitas festas, bebida, fumo e alguns comprimidos de vez em quando. E discussões intelectuais intermináveis cheias de ironias, citações, sarcasmo e uma certa competição não assumida. Mas era sempre muito divertido.
Beth já não precisava ter ao seu lado um homem que lhe dissesse que tinha valor, que lhe mostrasse como fazer, que lhe fizesse sofrer para mostrar que amava e vivia intensamente. O grupo fazia tudo isso, com a vantagem de que era muito mais fácil conviver e enfrentar as coisas de uma maneira pulverizada do que encarar o desespero de depender das flutuações de humor de uma só pessoa.
Sem a busca do amor idealizado que antes ela tanto aspirava, Beth passou a aproveitar as companhias fugazes que passavam por sua vida. Nesta época, ficou com muitos meninos e algumas meninas. Transava quando achava interessante e algumas vezes foi muito feliz. Em outras, nem tanto. Mas o saldo era sempre positivo e não havia muito tempo a perder.
A internet era o maior canal de comunicação de Beth com o mundo. Seu cordão umbilical de bits. De manhã, ao ligar o computador, o que Beth mais queria era ter recebido o maior número de e-mails, mensagens, scraps, testemunhos no orkut, posts em seu blog.
Era uma forma de sentir que era amada, desejada, querida, aprovada. Mantinha contato com um grande número de garotos e a cada dia conhecia novos paqueras pela internet. Alguns viravam “ficantes”, outros estavam sempre ali, numa brincadeira de conquista e sedução que deixava as portas abertas para o que pudesse vir a ser.
Beth mandava mensagens e e-mails para todos que podia. Devido ao grande número de correspondentes, abusava do “copy and paste”, o copiar e colar. Mandava mensagens iguais ou quase iguais para muitos meninos e, às vezes, nem sabia mais o que tinha dito e a quem.
E seu relacionamentos também começaram a virar, cada vez mais, uma seqüência de “copy and paste”. Ela repetia comportamentos, palavras e gestos de carinho. Era como se ela se relacionasse sempre com a mesma pessoa e só o nome mudasse com o passar do tempo. O sentimento era o mesmo, as sensações as mesmas, o prazer o mesmo.
As palavras soavam iguais, os beijos tinham o mesmo gosto, os orgasmos eras repetições de repetições de repetições. Quem era o outro, nessa relação, passou a ser um mero detalhe. Era sempre Beth e o outro, por mais que a pessoa que estava com ela mudasse.
Depois de um tempo, começou a ficar enjoativo e a única coisa que ocorreu a Beth era que precisava de mais e ela aumentava o ritmo. Precisava desse outro, fosse quem fosse e queria mais. As festas intermináveis exigiam mais energia e foi nesse período que Beth conheceu a cocaína. Algo que dava um colorido emprestado àqueles relacionamentos pálidos.
E os relacionamentos foram se apagando e a cocaína tornou-se mais brilhante para Beth a ponto de ela não conceber qualquer tipo de diversão sem o pó. As festas e “ficantes” foram ficando para trás e só a cocaína permaneceu. O pó passou a ser o “outro” de Beth.
E mais uma vez ela encontrou algo que lhe dizia que tinha valor, que lhe mostrava como fazer as coisas e que lhe fazia sofrer para mostrar que amava e vivia intensamente.
(Continua na série de posts "INVENTÁRIOS")

quarta-feira, 23 de abril de 2008

IMPERTINÊNCIAS 29

Caminhada (Samba do João)







João, meu amigo João,
Como vai você?
João, meu amigo João,
O qu’eu posso fazer?

Pr’a sobreviver (2x)
Nesse fuzuê (2x)
Não suporto mais (2x)
Já não tenho paz (2x)

João, meu amigo João,
Diz por onde é
João, meu amigo João,
O caminho da fé

Qu’eu quero andar (2x)
E me encontrar (2x)
Ouvir o coração (2x)
Transpirar paixão (2x)

João, meu amigo João,
Vê se diz pr’a mim
João, meu amigo João,
Quando chega o fim

Esse meu sofrer (2x)
Eu quero viver (2x)
João vê se me diz (2x)
Quero ser feliz (2x)

João, meu amigo João,
Vou me despedir
João, meu amigo João,
Pois j’é hora de ir

Valei Nosso Senhor (2x)
Tenho um grande amor (2x)
(Breque)
Eu já conheço a estrada
E a luz dessa caminhada
Leva pro meu bem.


Wilson Gasino

segunda-feira, 21 de abril de 2008

IMPERMANÊNCIAS 29



Sede





Vestido de sombra, sede e solidão,
o beduíno percorre um deserto sem nome e sem fim.

Dentro se si traz uma sombra tão grande
que faria noite do mais claro dos dias

A sede é o silêncio e o deserto é o labirinto
sem paredes da sua liberdade

Procura respostas para uma pergunta que já esqueceu
e a areia consome seus olhos

Um oásis perdido, um mar morto, talvez
Uma caravana cheia de ouro e jóias que se afundou no infinito das dunas

Havia muitas palavras em seu silêncio
e havia um vento incontrolável em seu coração.

Sorriu, mas havia muita dor em seu sorriso...

Wilson Gasino

domingo, 20 de abril de 2008

INVENTÁRIOS 28


Pesadelos Recorrentes 3




(Continuação da série de posts “INVENTÁRIOS”)


Beth virou-se e correu na direção da porta. Não conseguia respirar e parecia que tudo ao seu redor ia ficando cada vez mais escuro. Ouviu passos ruidosos e arrastados atrás de si e começou a perder o controle.
Não queria ficar ali. Não queria de novo ser vítima daquele monstro. Sabia que tinha de enfrentá-lo, mas estava tudo escuro, ela não tinha nada nas mãos e estava apavorada.
Chegou diante da porta e tentou abrir, mas não havia maçaneta do lado de dentro. Bateu desesperada. – Inútil – pensou em meio ao pânico. Ela sabia que não havia ninguém do outro lado. Ninguém para ajudá-la.
Ouviu uma espécie de grunhido alguns metros às suas costas. Tentando recobrar o controle, lembrou da pequena chave estranha e começou a procurar nos bolsos. Nada. Talvez tivesse deixado cair ao entrar e não lembrasse porque naquela hora estava transtornada.
Abaixou-se e tateou o chão à sua volta, mas só sentia pó e teias de aranha. – Luz – pensou – preciso de luz, preciso de alguma coisa, preciso de... fogo!!
Imediatamente o quarto se iluminou com várias tochas acesas. Olhou para o chão e viu a pequena chave estranha brilhando. Apanhou-a, ergueu-se e virou-se. O homenzarrão estava parado, parecia assustado.
Beth olhou bem para o monstro à sua frente. Era horrendo. Tinha os dentes pontiagudos e sujos de sangue e uma barba desgrenhada que descia até o peito.
Mas o olhar lhe parecia familiar. Eram olhos pequenos, como os de Beth e – identificou – eram iguais aos que ela vira muitas vezes no espelho, em seus momentos de desilusão e desespero.
Animada pela luz, Beth encheu-se de coragem e levantou o braço exibindo a chavinha que acabara de encontrar. O monstro se encolheu e caiu de joelhos. Beth se aproximou e tomou a faca das mãos dele.
O homenzarrão agarrou-se aos pés dela como quem pede clemência, mas ela o afastou com energia. Viu ao fundo do quarto uma porta trancada.
Caminhou até lá desviando dos pedaços de corpos pelo chão. Com a chavinha estranha abriu a porta e viu lá fora um lindo jardim iluminado por um dia maravilhoso.
Chamou o monstro:
- Agora vá e queime todos esses corpos e depois enterre as cinzas. Vou levar a faca comigo. Você não vai mais usá-la. Você fica aqui e quando eu precisar, vou chamá-lo.
O monstro aquiesceu.
Beth atravessou o quarto e abriu a porta que dava para o corredor. Deixou-a aberta. Guardou a faquinha e a chave no bolso. E acordou.


(Continua na série de posts “INVENTÁRIOS”)

sexta-feira, 18 de abril de 2008

IMPERMANÊNCIAS 28

A Vida dos Outros

Manu Sombra já tinha me indicado há várias semanas, mas só no último domingo eu finalmente fui ver A Vida dos Outros (Das Leben der Anderen), que está passando na Sala de Arte – Aliança Francesa. Muito bom. Interessante e angustiante.


O filme mostra um casal - um escritor e uma atriz - sendo vigiado pela polícia política socialista, a Stasi, da antiga Alemanha Oriental dos anos 80 do século passado. Era o período pré-queda do Muro de Berlim, quando a vigilância se tornou mais rígida porque as fugas e vazamentos de informação aumentavam a cada dia.
É um thriller psicológico interessante que mostra as fraquezas e idiossincrasias de qualquer regime totalitarista e como o poder acaba - pela força ou pela insistência - dobrando os seres humanos, para o bem ou para o mal.



Apesar de parecer coisa do passado, pertencente aos regimes totalitários de esquerda e direita do Século XX, esse tema não está tão distante assim do nosso dia-a-dia. Os mecanismos de controle são diferentes, muito mais sutis, mas, infelizmente, eles persistem.

O mais interessante desse tipo de processo é que, quase sempre, aquele que é controlado, em algum momento, permitiu o acesso de quem o vigia. Em algum momento abriu mão da sua liberdade e privacidade em nome de algo que considerava mais importante. No fundo, abriu mão da responsabilidade sobre as próprias decisões, deixando-se levar por um belo discurso, uma promessa, uma comodidade, um prazer momentâneo, um benefício financeiro ou qualquer coisa assim.

Em muitos casos, isso também acontece pelo mecanismo inverso. Porque se acredita estar protegido de algo que seja uma ameaça maior. E o medo nunca é um bom conselheiro no longo prazo.

O que mais impressiona a gente é que vez ou outra surge algum imbecil elogiando tempos de ditadura e controle no Brasil, esquecendo de toda a carnificina, medo, tortura, silêncio, desmandos, invasões de privacidade, corrupção, abuso de poder e injustiça.

Isso me lembra a letra daquela música “Toda Forma de Poder” dos Engenheiros do Hawaii:

“Toda Forma de Poder”

“Eu presto atenção no que eles dizem
Mas eles não dizem nada
Fidel e Pinochet tiram sarro de você
Que não faz nada e eu
Começo a achar normal que algum boçal
Atire bombas na embaixada

Se tudo passa, talvez você passe por aqui
E me faça esquecer tudo que eu vi
Toda forma de poder
É uma forma de morrer por nada
Toda forma de conduta
Se transforma numa luta armada
A história se repete
Mas a força deixa a estória mal contada

Se tudo passa, talvez você passe por aqui
E me faça esquecer tudo que eu vi
O fascismo é fascinante
Deixa a gente ignorante e fascinada
É tão fácil ir adiante
E esquecer que a coisa toda tá errada
Eu presto atenção no que eles dizem
Mas eles não dizem nada”

Humberto Gessinger

quarta-feira, 16 de abril de 2008

IMPERTINÊNCIAS 28



ESTATUTO DO HOMEM E DA VIDA








Thiago de Mello

1: Fica decretado que agora vale a verdade, que agora vale a vida e que de mãos dadas trabalharemos todos pela vida verdadeira.

Art. 2: Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Art. 3: Fica decretado que, a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas, que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra; e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde onde cresce a esperança.


Art. 4: Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu. Parágrafo único: o homem confiará no homem como um menino confia em outro menino.


Art. 5: Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira. Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura das palavras. O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa.


Art. 6: Fica estabelecida, durante dez séculos, a prática sonhada pelo profeta Isaías, e o lobo e o cordeiro pastarão juntos e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.


Art. 7: Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça, e a alegria será uma bandeira generosa para sempre desfraldada na alma do povo.


Art. 8: Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre não poder dar amor a quem se ama sabendo que é a água que dá a planta o milagre da flor.


Art. 9: Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal do seu suor. Mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura.


Art. 10: Fica permitido a qualquer pessoa, a qualquer hora da vida, o uso do traje branco.


Art. 11: Fica decretado, por definição, que o homem é um animal que ama o belo e por isso é belo, muito mais belo que a estrela da manhã.


Art. 12: Decreta-se que nada será obrigado nem permitido. Tudo será permitido, sobretudo brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela. Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida: amar sem amor.


Art. 13: Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou.


Art. 14: Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas. A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio e sua morada será sempre o coração do homem.

terça-feira, 15 de abril de 2008

INVENTÁRIOS 27


Pesadelos recorrentes 2





(Continuação da série de posts “INVENTÁRIOS”)

Por algum tempo, Beth ficou com medo de dormir. Ela se sentia dividida. Por um lado, não queria sonhar e voltar àquele quarto escuro aberto com a pequena chave estranha. Por outro, queria muito saber o que havia lá dentro e, para além de todo o horror, tinha um certo sentimento de familiaridade com aquele cômodo.

Demorou muitas noites para que ela finalmente sonhasse e voltasse ao quarto escuro. Foi como se de novo ouvisse a porta batendo atrás de si. Sentiu mais uma vez o cheiro de sangue e mofo, a falta da chave nas mãos e o pânico começando a chegar enquanto ia perdendo o controle. Foi o barulho no fundo, que parecia uma faquinha de lâmina serrilhada cortando alguma coisa, que a conseguiu fazer manter o foco na situação.

Apegou-se ao barulho e falou para si mesma que precisava descobrir o que era aquilo, o que havia naquele quarto e porque o cômodo a afetava tanto. Aos pouquinhos, seus olhos foram se tornando mais acostumados com a escuridão. Inicialmente viu formas que pareciam de manequins velhos espalhados por todos os lados. Lembrou-se dos velhos manequins e moldes de costura de Vó Helena que ficavam no porão da velha casa do Rio Vermelho e se animou um pouco.

Mas logo viu que a animação era vã. Não eram manequins. Eram pessoas mesmo. Pessoas que ela havia conhecido, que havia amado e odiado, e que estavam espalhadas pelo quarto nas mais diferentes posições. Todas estáticas e com uma coisa a mais em comum: estavam machucadas, cortadas, mutiladas, destroçadas como velhas bonecas destruídas.

Havia também muitas imagens dela mesma, muitas beths, em várias idades e situações diferentes. E todas estavam mutiladas, com sangue escorrendo e pedaços faltando. Eram ela mesma, mostrada em momentos em que tinha algum sonho, projeto ou estava iniciando algo promissor. E tudo, no fim, dava sempre errado. Em grande parte porque ela mesma se convencia disso. E se sabotava.

Aquela cena de carnificina trazia a Beth, ao mesmo tempo, uma sensação de horror e de alívio de uma dor antiga e represada. Como a sensação de uma ferida infeccionada sendo finalmente aberta.

Beth estava ainda imersa nessas sensações quando percebeu que, a medida que ia andando para os fundos do quarto, o barulho da faquinha ia se tornando mais forte. Seus olhos iam se tornando mais acostumados com o escuro e ela pode, então, ver, mais adiante, uma figura grande debruçada sobre um dos corpos.

Viu que era um homem alto, gordo e forte. Deveria ter uns dois metros de altura e uma longa barba negra. Estava absorto no trabalho de retalhar um dos corpos com uma pequena faca.

De repente, o homem pareceu ter notado a presença de Beth. Parou o movimento da faca e virou-se. Beth parou de respirar. Não sabia se tinha forças para aguentar aquele encontro. Não sabia se queria acordar ou continuar ali, no quarto escuro que abrira com a pequena chave estranha.

(Continua na série de posts “INVENTÁRIOS”)

segunda-feira, 14 de abril de 2008

IMPERMANÊNCIAS 27


Go!

Marillion

Turn your life upside down
Take a car into town
Wait until the world's asleep
And tear it up and never stop again
Take a train to the sea
Stay up all night ..and be
It only takes a fraction of a second
To turn your life upside down

Take a train to the sea
Be anyone you want to be
A little spark of light inside your mind
Safe and sound off the ground upside down

Wide awake on the edge of the world

domingo, 13 de abril de 2008

IMPERTINÊNCIAS 27

Crônica de uma reportagem imaginária
(ficção)




Era uma pauta de reportagem como outra qualquer. Deveria ser, ao menos. Mais uma matéria sobre a seca, esse problema crônico que assola muitos lugares do Nordeste.
A história girava em torno do fato de que no sertão da Bahia a seca chega a durar ciclos de seis, sete, até oito anos. Com isso, muitas crianças que nasceram nesse período, nunca viram a chuva.
Eu deveria ir lá, conversar com as crianças e as famílias. Depois, escolher alguna dos pequenos entrevistados e levar até Salvador, junto com os pais, para que eles tivessem contato com a chuva pela primeira vez. E, por fim, descrever a experiência para os leitores.
É o que a gente chama no jornal de reportagem humana. Um certo sentimentalismo que eu, particularmente, já não tenho mais, mas que as pessoas gostam de ler. Faz muito tempo que eu já não me emociono com essas coisas. Mas, sei lá, são os ossos do ofício.

Em Salvador, onde eu nasci, a chuva é algo comum. Chega a ser flagelo, às vezes, derrubando morros, matando gente.

Seu João, dona Zeni, e os meninos, Nino e Lia são uma família comum de Macucuré, cidadezinha do Raso da Catarina, sertão baiano. Família igual a tantas outras. Morando numa casinha de pau-a-pique, num sitiozinho pobre, sem água e com a lavoura toda seca. Algumas cabras e um pouco de mandioca são toda a riqueza que eles têm.
As crianças nunca viram a chuva. Nino tem seis anos e Lia tem cinco. Os pais falam da chuva. Da tão esperada chuva. Mas os dois pequenos nem imaginam como faz para a água cair do céu.

Eu nunca senti falta da chuva, na realidade, ficava muito chateado quando ela vinha de repente e atrapalhava as brincadeiras, estragava a praia, interrompia o baba.

Já na estrada, cheio de expectativa no coração, Nino dá vazão às suas especulações metafísicas:
- Moço, é Deus quem fez a chuva?
- Acho que sim...
- Então Deus não gosta da gente daqui de Macucuré.
Não sei como responder a isso. Poderia explicar o fenômeno cientificamente, mas, no fim, daria tudo no mesmo. É pura filosofia para um garoto de seis anos. Aliás, é para mim também, já que nunca acreditei muito nesse negócio de meteorologia.

Na realidade, já faz algum tempo que eu perdi o interesse por discussões filosóficas, ideológicas ou o que seja. Já não me preocupo mais.
Vejo hoje os garotos saindo da faculdade e chegando às redações sem manifestar qualquer interesse pela coletividade. Acho que é sinal dos tempos. O Renascimento tirou Deus do Centro do Universo e colocou o homem. A modernidade tirou a humanidade dali. E o que veio no lugar? O eu, a tecnologia, o dinheiro, nada? Acho que a única diferença entre mim e os garotos da faculdade é que eu sinto falta de acreditar em alguma coisa. Acho que eles não.

Sinto cheiro de pó, cheiro de chuva chegando. E lembro de quando era criança. Da excitação que esse cheiro dava. A criançada saía correndo do campo de futebol. Ia cada um para a sua casa, se esconder da chuva.

Estamos no meu jardim, Nino, Lia e eu. Seu João e dona Zeni estão lá dentro, olhando através da grande porta de vidro aberta. Eles sabem o que é chuva. Não há novidade para eles.

Eu gostava de ir para o meu quarto e ouvir, deitado no escuro, de janelas fechadas, o tamborilar dos dedinhos da chuva nas telhas de barro. Uma sinfonia que começava com algumas notas e depois ia num crescendo, enchendo tudo com seu chiado sinfônico imenso.

Um relâmpago rachou o céu. Logo vem o estrondo, pensei. As crianças estão maravilhadas. Parece até que sentem a chuva chegando.

Vem para mim, muito forte, a lembrança de um dia em especial. Eu tinha mais ou menos a idade de Nino. Nesse dia, a chuva me pegou lá fora no meio da brincadeira. Entrei correndo em casa e deixei um rastro de barro e pingos d´água pela casa.
Como eu sempre fazia, fui para o meu quarto, para ouvir a trovoada e o cantar da chuva no telhado. Estava nesse idílio de sensações, quando a sombra de meu pai surgiu na porta do quarto. Senti que ele estava muito zangado.

Trovão.

Senti o rosto queimar com o tapa. O barulho foi alto e o rosto dói, assim como aperta o coração pela violência inesperada. Não levantei os olhos. Sabia que o olhar de reprovação dele ia doer muito mais.
Mas o pior veio depois. Comecei a chorar e o braço subiu no ar novamente em tom de ameaça.
-Homem não chora. Não chora, ouviu. Não chora.
Engoli o choro. Engoli as lágrimas. Entendi a mensagem.

As crianças estão encantadas com tudo, principalmente com o fato de que há água em todo lugar aqui em Salvador. O mar tão grande, os rios, as torneiras jorrando. Não viram ainda a chuva, mas estão muito admiradas. E eu comento:
-A gente mesmo é feito de água...
-Num pode, não, moço. Se tivesse água dentro da gente, a gente num passava sede, né?
Mais uma vez eu me esquivo de confrontar a inocência com dados científicos. Para falar a verdade, eu também nunca entendi muito bem isso de 70% de água no organismo, mesmo.

As árvores tremem sob o vento. Folhas voam para lá e para cá. A chuva vem chegando, os primeiros pingos grossos caem no chão. Vão formando estrelas na calçada. Sinto a chuva mais próxima. Dou dois passos e estou abrigado. Mas ainda bem próximo das crianças, que olham para as nuvens se contorcendo no céu.

É um milagre para elas. Ver o mar pela primeira vez é uma experiência de impacto para qualquer um. Mas o mar, apesar da imensidão, ainda obedece à lógica. É um imenso reservatório de água no chão.
A chuva não. A chuva é água que cai do céu. Vem de onde não se espera e a lógica simples das crianças não explica. É milagre.

Chove mais forte. As crianças começam a dançar sob a água que cai. Riem, pulam e correm sem direção. Os pais, lá dentro, sorriem e se olham.

Sinto uma mãozinha segurando na minha. As duas crianças continuam dançando na minha frente. A mãozinha é de um menino de seis anos que eu não vejo há muitos anos. Que eu perdi em algum lugar.

Um relâmpago. Sinto mais perto. Sei que já não vou conseguir segurar.
Vejo o menino deitado no quarto escuro. Ele adora a chuva.
Rosna o trovão. Sinto a chuva por dentro.
Nino pára na minha frente e me olha. Chama a atenção da menina e aponta para o meu rosto.
- Ói, Lia, o moço tinha razão. Tem água dentro da gente mesmo.
Wilson Gasino

sábado, 12 de abril de 2008

INVENTÁRIOS 26

Pesadelos recorrentes 1




(Continuação da série de posts "INVENTÁRIOS")
Na primeira vez em que Beth teve aquele sonho recorrente, ela apenas viu a escada que descia para o porão da casa velha do Rio Vermelho, onde morara na infância. Mas, no sonho, ao invés do pequeno porão onde eram guardadas as coisas que já não serviam mais para nada, aparecia um longo corredor, com uma seqüência aparentemente interminável de portas fechadas.
Na segunda vez, lembrou-se Beth ao acordar, ela descobriu o molho de chaves pendurado na parede. Pegou o molho e olhou com cuidado cada uma das chaves. Umas eram grandes, outras pequenas. Umas era douradas e cheias de rococós e outras eram bem simples e comuns. Umas eram bonitas e outras bem feiosinhas.

Mas uma determinada chave chamou mais a atenção de Beth do que todas as outras. Era uma pequena chave toda enferrujada e suja de teias de aranha. Tinha um formato pontiagudo na ponta, como uma pequena adaga. Parecia ser muito velha e há muito tempo não usada. Mas, mesmo com todos esses detalhes esquisitos, Beth não conseguia explicar porque a chave lhe causava aqueles calafrios de medo.

Foi só no terceiro sonho que Beth começou a testar e a abrir as portas com as respectivas chaves. Encontrou as mais diversas coisas. Num quarto, encontrou brinquedos antigos, noutro viu carteiras da escola onde aprendera a ler, num terceiro, eram pedaços de gaze com sangue, seringas e gesso que a lembraram de pequenos acidentes domésticos na infância e na adolescência. Mais adiante, abriu a porta e achou fotos das amigas do ginásio enquanto que, num outro quarto, só havia música, muita música, todas as músicas que ela ouvira na vida.

Porta por porta, foi usando as chaves do molho e descobrindo o que havia em cada quarto. Alguns cômodos revelavam descobertas felizes, outros traziam lembranças tristes ou doloridas. Mas todas eram boas no fim, porque mostravam alguma coisa que Beth havia enfrentado e superado em algum momento.

Mas e o quarto da pequena chave estranha? Nada de chegar. As portas iam se sucedendo e as descobertas aconteciam, mas o quarto da pequena chave não chegava nunca, gerando uma expectativa ainda maior em Beth.

Foi num dos sonhos seguintes que ela vislumbrou uma pequena porta entre duas outras, no meio do corredor. Era uma porta diferente, menor e toda tosca, colocada de forma torta, como se alguém a tivesse posto ali sem um planejamento prévio. Imediatamente, Beth teve a certeza de que aquela era a porta da pequena chave estranha. A semelhança com o aspecto da fechadura era gritante e uma voz dentro de Beth dizia que era lá mesmo e que ela deveria sair dali, correr, fugir e, de forma alguma, entrar.

Na lembrança em vigília de Beth, o estágio de indecisão diante da porta durou bastante tempo. Durante alguns sonhos, ela esteve parada ali, sem se decidir, sentindo muito medo e, ao mesmo tempo, uma atração estranha em relação àquele aposento. Até que, em determinado sonho, ela finalmente colocou a pequena chave estranha na fechadura e a girou, fazendo um barulho estranho de ranger e estalar.

A fechadura cedeu. A porta se deslocou alguns centímetros sem que Beth a tocasse. O cômodo era escuro e cheirava muito mal. Os primeiros ares que saíram de lá revoltaram o estômago de Beth, que quase vomitou de nojo e ansiedade. Pela pequena fresta aberta, ela só pode ver as teias de aranha e a escuridão do quarto.

E ouviu, bem baixinho, lá no fundo, um barulho como se fosse alguma coisa sendo cortada por uma faquinha com dentes. Não sabia o que era, não via nada, mas, repentinamente, um sentimento de pavor irracional e incontrolável tomou conta de seu espírito. Tremendo toda e sem conseguir tirar os pés do chão, escutou a porta bater e a fechadura ranger e estalar atrás de si. Não sabia como tinha entrado. Não havia mais nenhuma chave em sua mão. E o barulho da faquinha continuava, lá no fundo.

Acordou no meio da noite gritando. E foi só no sonho seguinte que conseguiu voltar ao quarto escuro.
(Continua na série de posts "INVENTÁRIOS")

sexta-feira, 11 de abril de 2008

IMPERMANÊNCIAS 26



Christopher Morley

Tendo nascido companheiro dos pássaros,
Das feras e das abelhas,
E inconsciente de ti mesmo como as árvores...

Exultante explorador de cada sentido
Sem desânimo, sem fingimento...
Em teus inexperientes olhos transparentes
Não existe consciência nem surpresa

- Aceitas os estranhos enigmas da vida
Tua estranha Divindade ainda presente...

Houve dias, ó doce elfo,
Em que foste a própria poesia

terça-feira, 8 de abril de 2008

IMPERTINÊNCIAS 26


Mensagem
Alexandre Bowen

Rir é arriscar parecer tolo.
Chorar é arriscar parecer sentimental.
Tentar alcançar alguém é arriscar envolvimento.
Expor sentimentos é arriscar rejeição.
Expor seus sonhos perante a multidão é arriscar parecer ridículo.
Amar é arriscar não ser amado de volta,
Seguir adiante face a probabilidades irresistíveis é arriscar ao fracasso,
Apenas uma pessoa que corre riscos é livre.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

INVENTÁRIOS 25


Escaninhos

(Continuação da série de posts "INVENTÁRIOS")

Durante a faculdade de Psicologia, Beth começou a fazer terapia. Passou por vários terapeutas, buscando sempre abordagens e estilos diferentes. Em algumas vezes, foi bastante divertido. Em outras, simplesmente não gostou. Com alguns terapeutas, aprendeu muitas coisas sobre si mesma, com outros, perdeu tempo. Mas o saldo era sempre positivo.
A terapeuta de quem mais gostou foi Paula, com quem começou a ter sessões algumas semanas depois de ter cortado os pulsos. Paula era bastante jovem, quase da idade de Beth. Era tranqüila, tinha um jeito meio alternativo e, para muitos pacientes, deveria parecer uma maluca. Mas Beth gostou da terapia com ela desde o primeiro encontro.

Uma das coisas que mais chamaram a atenção de Beth, entre as coisas que Paula dizia, era sobre a “integração da psique”. Conceito que Beth já conhecia da faculdade, mas que nunca tinha visualizado para si mesma.
Paula usava a figura de escaninhos e gavetas:
- É como se você tivesse um monte de escaninhos e vai aguardando cada coisinha no seu lugar. E tem também as gavetas, onde você guarda aquelas coisas em que não quer mexer com freqüência ou quer deixar meio escondidas. Está tudo lá: tudo bem divididinho, bem separadinho. Cada coisa no seu lugar.
- E qual é o problema com isso?
- O problema é que a sua vida é um monte de pedacinhos separados. Você é um monte de pedacinhos de pessoa e não sabe como juntar isso.
- Juntar?
- É. As coisas não se misturam, não se fundem, não se enriquecem.
- Não sei como isso funciona?
- Funciona assim: você, no trabalho, é um pedacinho de você. No amor, é um pedacinho de você. Na vida social, idem. No seu lado criativo, idem. E por aí vai.
- E daí?
- E daí é que é tudo pequeno. Nada é grande, nada é pleno. Você nunca vive um grande amor. Mas pequenos amores. Casos, se você preferir. E, no trabalho, vai fazendo coisas pequenas aqui e ali. Está feliz com sua vaga na área de recrutamento e seleção de uma empresa de pequeno porte. Não pensa em clinicar, em aprofundar estudos, nada assim. Tudo é pequeno. Pequenas tarefas. Pequenos desafios. Pequenas conquistas.
- Eu sinto isso. Mas não sinto vontade de nada grande.
- Não caberia mesmo. Com tantas gavetas e escaninhos, como você poderia aspirar a algo maior? - Mas por que é que isso acontece?
- Foi uma forma que você encontrou de se viver a vida com segurança, de correr menos riscos, de controlar tudo. Você sabe sempre até onde as coisas vão.
- Mas isso não é bom?
- Bom? Pode ser. Mas pode ser medíocre também. Você nunca vai viver nem fazer nada grande. Nunca vai viver nada pleno e profundo no seu ser. Nunca com toda a sua alma. Pequenas dores. Pequenos prazeres. Pequenos esforços. Pequenas conquistas.- E o que eu faço?
- Se livre de todos esses escaninhos e essas gavetas.
- Como?
- Você é que vai me dizer...

(Continua na série de posts "INVENTÁRIOS")

domingo, 6 de abril de 2008

IMPERMANÊNCIAS 25


Amor de Índio
Beto Guedes





Tudo que move é sagrado
e remove as montanhas
com todo cuidado, meu amor
enquanto a chama arder
todo dia te ver passar
Tudo viver ao teu lado
com o arco da promessa
no azul pintado prá durar
abelha fazendo o mel
vale o tempo que não voou
a estrela caiu do céu
o pedido que se pensou
o destino que se cumpriu
de sentir teu calor e ser todo
todo dia é de viver
para ser o que for e ser tudo

Sim, todo amor é sagrado
e o fruto do trabalho
é mais que sagrado, meu amor
a massa que faz o pão
vale a luz do teu suor
lembra que o sono é sagrado
e alimenta de horizontes
o tempo acordado de viver
No inverno te proteger
no verão sair prá pescar
no outono te conhecer
primavera poder gostar
no estio me derreter
prá na chuva dançar
e andar junto
O destino que se cumpriu
de sentir teu calor
e ser tudo

sábado, 5 de abril de 2008

IMPERTINÊNCIAS 25

Tenha medo!






Certa vez, uma terapeuta me disse que as coisas das quais mais temos medo são as que, no inconsciente, mais desejamos. Achei muito profundo e me pareceu aplicável em certas questões psicológicas. Mas a generalização dessa idéia logo me pareceu absurda: fiquei imaginando uma senhora desejando ardentemente uma barata ou um rato aparecerem ou coisa que o valha. Não dá.

Mesmo assim, o medo, essa emoção ancestral, nos permite especular uma série de questões reveladoras sobre as pessoas. Dias atrás, descobri um anjo lindo que tem medo de escuro. Já vi também mulheres muito seguras que tremiam frente a uma inofensiva mariposa e marmanjos inteligentes que se borravam com medo de falar em público. O medo nada tem de racional e está ligado diretamente ao que temos de mais ancestral: lutar ou correr.

Li um texto de Stephen King, prefácio do Drácula de Bram Stoker, em que ele diz que os medos retratam os tempos em que vivemos. Cita como exemplo o fato de em Drácula todos os temores estarem voltados ao misticismo e aos impulsos emocionais, enquanto as soluções vem da ciência de Van Helsing. É um retrato do tempo positivista em que foi escrito.

Já no Frankenstein de Mary Shelley, o medo é do exagero da ciência, a crença de que o homem pode conquistar tudo com o saber, de que pode até desafiar o divino, brincar de deus. O livro foi escrito justamente no período anterior ao da Revolução Industrial, quando a virada de pensamento se anunciava e havia temor sobre até onde a ciência poderia levar o homem.

O interessante, lembra King, é que vivemos hoje um tempo parecido com o de Shelley: medo de máquinas, medo de onde iremos parar com tudo isso. Dúvidas? Dá uma olhada nos filmes de ficção e terror: máquinas que dominam o mundo, matrix e coisas afins. O mundo dá voltas e o medo também.

A propósito, recebi nas mãos, vindo de Simone Ribeiro, o livro "Você tem medo de quê? - Fobias modernas". O autor, o jornalista/músico/escritor inglês Tim Lihoreau, faz um exercício humorístico interessante sobre quais são os novos medos das pessoas nos nossos tempos. São sacadas engraçadas mas que, ao mesmo tempo, fazem a gente se identificar. Vou dar alguns exemplos:

- Abcelofobia - Medo de sair de um reservado de banheiro - A fobia, no caso é de sair do reservado e encontrar alguém conhecido no banheiro que se espante com o, digamos, mal-cheiro.

- Agmenofobia - Medo de entrar na fila errada - Lembro de estar certa vez numa longa fila de cinema (acho que era para ver "Diários de Motocicleta") e de um sujeito ter perguntado oito vezes se aquela era a fila para a sala 8, para o horário das 20h, para o filme certo etc.

- Alterdissemofobia - Medo de estar perdendo alguma coisa em outro canal - Esse realmente não requer explicações.

- Aperepipofobia - Medo de abrir e-mails - ?????????????

- Cetusermofobia - Medo de call-centers - Esta eu não vou estar explicando para você estar entendendo...

- Excirculofobia - Medo de não ser escolhido - Quem é que já não morreu de medo de ficar de fora do jogo de futebol, queimada, volley ou qualquer outra brincadeira por não ser escolhido no par ou ímpar. Tem gente que tem trauma de infância disso. Mas não é nada grave.

- Hebdomofobia - Medo das noites de domingo - É Fantástico! Acredito que aquela musiquinha causa arrepios em muita gente. Em mim, por exemplo, é baixo astral mesmo.

São dezenas de medos. Quem se interessar, pode dar uma olhada no livro. É passatempo, mas pode fazer a gente pensar nos novos medos, como por exemplo o medo de ter escrito um post ridículo, ou longo demais, ou os dois, sei lá...

quarta-feira, 2 de abril de 2008

INVENTÁRIOS 24


Teias de aranha





(Continuação da série de posts "INVENTÁRIOS")

Foi durante a gravidez de Beth que a mãe dela descobriu sobre a amante do pai. Ela não sabia antes. Talvez não quisesse saber e nem ao menos se permitisse suspeitar para que nada atrapalhasse aquela imagem de felicidade que ela gostava de vender para os outros.

Mas, durante a gravidez de Beth, ela não pode mais negar. Viu com seus próprios olhos. Sentiu na carne. Sentiu na alma. Culpou o corpo inchado. A barriga grande. O ventre prenho. Culpou alguém que nem ao menos havia ainda nascido.

Era como se aquela pequenina mulher dentro dela fosse a culpada de todos os seus males. Da perda do macho. Da perda do estatus. Da vergonha. Da ferida no ego. Da dor sentida. Do abandono como fêmea.

À noite, fazia planos de tirar a criança, rogava pragas, ameaçava, maldizia, chorava e lamentava. Nada parecido com a gravidez do filho mais velho, Ricardo. Uma gravidez amada e festejada.

Quando Beth nasceu, não a quis ver. Pouco pegou no colo. Não deu de mamar e cuidou descuidando. Deixou que a mãe, Dona Helena, e a babá cuidassem. Pensaram que era depressão pós-parto.

O pai não tinha tempo. Muito trabalho. E a amante. Definição genérica para um rol de mulheres que foram se sucedendo no tempo.

Beth talvez nunca tenha compreendido essa rejeição de forma consciente. Mas sentia. Sempre sentiu. O ódio da mulher e o desprezo do homem. Sempre.



(Continua na série de posts "INVENTÁRIOS")

IMPERMANÊNCIAS 24


Bevabbè

Inteligente e muito engraçada. Bevabbè é a peça que a atriz italiana (hoje baiana) Dodi Conti está encenando no Teatro XVIII. Ela já fazia sucesso na Itália. Fazia teatro, TV e cinema e um dia veio curar um coração machucado aqui na Terra de Todos os Santos. Ficou. E trouxe na mala seu talento, seu texto e seu tempo excelente de comédia.

Bevabbè quer dizer, em italiano, algo como “assim é demais”. A peça, sinal das mudanças profundas nas discussões sobre a sexualidade nos nossos tempos, fala de uma mulher homossexual que deseja voltar a ser heterossexual. Suas aventuras, decepções e surpresas são contadas de forma engraçadíssima por Dodi. E levam a gente a pensar muito sobre como andam as cabeças dos homens e mulheres atualmente, seja lá qual for a sua opção ou não-opção.

A peça fica em cartaz até o final do mês de abril, sempre nas quintas e sextas-feiras, às 20h. Os dias são os seguintes: 3 e 4, 10 e 11, 17 e 18, e 24 e 25 de abril. O ingresso é baratinho: R$ 4,00 reais e garante muitas risadas.

Um detalhe: o sotaque mezzo-italiano é uma cereja no bolo.

Detalhe 2: a visão que ela mostra dos homens heterossexuais na peça é horrível. Saí de lá imaginando que nós somos algum tipo de monstrengo. Bom pra rir e refletir um pouco.