sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

IMPERMANÊNCIAS 14


There Will Be Blood

Só fui ver “Sangue Negro” (There Will Be Blood), de Paul Thomas Anderson, depois do Oscar. Já tinha visto o grande vencedor “Onde os Fracos Não Tem Vez” (No Country For The Old Man).
Na realidade, gostei mais de Sangue Negro. Os dois filmes tem bom roteiro, boa direção bom elenco, e, principalmente, um grande personagem interpretado por um excelente ator, que acaba levando o filme. Javier Bardem faz o psicopata Anton Chigur e Daniel Day-Lewis o ambicioso “oil-man” Daniel Plainview.

Nenhum dos dois filmes traz uma linguagem nova em termos de cinema: um thriler nervoso e um drama convencional, os dois com final infeliz. Mas Sangue Negro me pareceu mais bem construído e finalizado. Talvez eu seja muito conservador ou ignorante em termos de cinema. Ou, talvez, simplesmente porque eu tenha achado espetacular a atuação de Day-Lewis. E é realmente muito bom ver a atuação desse grande ator (bissexto no cinema) que se desenvolve até nos detalhes mínimos da postura corporal. Muito bom.

Sai capeta
Outro ponto interessante de Sangue Negro, é aquele garoto de cara esquisita (Paul Dano) que faz papel de Edir Macedo quando jovem. Muito bom também.
Os dois fazem um contraponto bacana. Cada um com a sua visão dogmática da vida. Levando até as últimas conseqüências esse comportamento no aspecto externo, e vivendo, simultaneamente, imensas dúvidas por dentro.
A melhor mensagem do filme é justamente essa: a realidade não se amolda a certezas absolutas, a caminhos inflexíveis, a dogmatismos inquebrantáveis.
Cada um busca o poder de uma forma diferente: o dinheiro ou a fé cega. Mas o mundo não é tão simples assim. A dúvida monstruosa vai crescendo por dentro, e quanto maior ela é, mais forte se torna a necessidade de – pela força, pelo discurso ou pelo dinheiro – tentar amoldá-la ao que se quer provar.



E sempre há o momento da quebra. Que pode ser um momento de aprendizado, de ruptura e abertura, ou pode servir apenas para tornar ainda mais altos e mais largos os muros à volta.
Na realidade, a única coisa que o ser humano busca sempre é ser amado. O que varia são as formas de buscar isso e a confusão que as pessoas fazem entre o meio e o fim. Ou seja, se inicialmente a busca do poder é uma forma de tentar ser amado/admirado, muita gente que entra nesse caminho acaba confundindo as coisas. E, no fim, acaba pensando que o que está buscando realmente é o poder pelo poder.

Elizabeth
Sobre Elizabeth – The Golden Age, apenas uma observação: a transposição totalmente intempestiva da discussão sobre tolerância religiosa e dominação política. Fica totalmente artificial. Achei bacana ver no filme o pirata/soldado/comerciante Sir Walter Raleigh, que eu já tinha citado aqui no blog comentando os livros “Mr. Vertigo” de Paul Auster e “Código da Vida” de Saulo Ramos (no post "Impermanências 2").


Juno
Já em relação a Juno, também me senti um pouco decepcionado depois de tanta expectativa. A atriz Ellen Page realmente faz um bom trabalho e o resultado é uma garota semi-histérica, irritante, que não para de falar e acha que sabe tudo mais do que os outros. Mas ela faz um caminho interessante em busca da sua própria ternura. “Try a litle tenderness”. E acaba conquistando a gente.

O filme é bonitinho, engraçado e ótimo como entretenimento. Na minha modesta visão, o que o diferencia das demais comédias adolescentes que invariavelmente acabam indo parar (sendo eternamente reprisadas) na Sessão da Tarde é justamente a atuação da atriz e o ritmo alucinante da personagem (mérito do roteiro ganhador do Oscar).

Gostei do final. Gosto de finais felizes. Os dois tocando violando e cantando juntos na calçada. É bom sair do cinema assim, não é?


quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

IMPERTINÊNCIAS 14


Walden

“Deixei a floresta por uma razão tão boa quanto a que me levava para lá. Talvez, então, me parecesse ter muitas outras vidas para viver; eu não podia gastar mais tempo com aquela”.

Henry David Thoreau

Folhas de Relva

O lugar de meus pés
está lavrado e ajustado em granito
rio-me do que dizem ser dissolução
– conheço bem a amplitude do tempo.

Walt Whitman

Amely




Pryscila Vieira

http://pryscila-freeakomics.blogspot.com/

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

INVENTÁRIOS 13


Sanbenito e Sanselimão

(Continuação da série de posts INVENTÁRIOS)
- Qual é a pergunta?
- Nossa. Tão rápido assim? Eu mal chamei e você já apareceu.
- Eu disse que viria quando você tivesse a pergunta pronta.
- Eu tenho. Acho...
- Acha ou tem certeza?
- Tenho certeza.
- E qual é?
- Tô um pouco tensa. Fico com vergonha. Posso perguntar mais uma coisa sobre o senhor? Digo, sobre você?
- Pode – respondeu o homem de terno branco, sentado aos pés da cama.
- De onde você vem?
- Muito complicado. Você realmente não teria como entender. Melhor você pular essa.
- O que você é? É gente, é espírito, é anjo, é um bruxo, é um ET, é o capeta? É Deus?
- Nenhuma das anteriores. Não vou responder essa também. Você não entenderia. Relaxe e pense que eu tenho as respostas para todas as perguntas das pessoas. Tenho acesso a esse conhecimento compartilhado por todos no universo. Posso acessá-lo a qualquer momento. Por isso alguns me chamam de Bibliotecário.
- Você é uma espécie de “Google” espiritual? É isso?
- Algo parecido. Talvez um Wikipedia seja mais próximo do que eu sou. Com a ressalva de que eu sei as respostas em profundidade. Elas são absolutas, não há possibilidade de erro.
- Tá certo, então.
- E a sua pergunta?
- Bom, lá vai: quero saber quem sou eu?
- Por que você quer saber isso?
- Você não pode me responder isso?
- Não é isso. Eu só quero saber exatamente o que você quer saber. Na realidade, o fato de eu devolver a pergunta a você já faz parte da resposta.
- Eu quero saber porque acho que só assim vou saber o que quero e saber o que preciso pra ser feliz. Quero saber o que eu tenho lá dentro, quem eu sou bem lá dentro, no princípio.
- Você acha que tem um princípio?
- Não sei...
- Se nós somos aquilo que os outros vêem, o que somos, então, quando ninguém nos vê? Somos alguma coisa?
- Não sei...
- Feche os olhos. Mergulhe fundo em você mesma, o que você vê?
- Minha infância.
- Vá mais fundo, tire as outras pessoas, as coisas que você aprendeu, as referências dos outros. O que você vê?
- Não sei...
- Continue. Mais fundo. E agora?
- Nada.
- É isso mesmo, então.
- Nada. Eu sou nada?
- Talvez seja tudo.
- Tudo ou nada?
- Faz diferença nesse ponto em que você se encontra?
- Não. Parece tudo a mesma coisa aqui. Não tem em cima nem em baixo, nem quente nem frio, nem certo ou errado. Afinal, existe certo ou errado?
- O que você acha?
- Meu pai e minha mãe me disseram um monte de coisas sobre isso. Mas eles nunca faziam aquilo que diziam. Maior hipocrisia. Fui vendo que as coisas que eles falavam não tinham nenhum encaixe com a realidade. Hoje, eu não sei se existe certo ou errado. Acho que não existe.
- E o que isso significa?
- Que tudo pode. Mas, então, se tudo pode... Então, Deus não existe. Certo?
- Um escritor russo chamado Dostoievsky já chegou a uma conclusão parecida, só que pelo lado contrário: “se Deus não existe, então tudo é permitido”.
- Mas isso é verdade?
- Não necessariamente. O que não pode coexistir é esse conceito de Deus cheio de regras fixas que se aplicam indiscriminadamente a todos os casos.
- Mas existe certo e errado?
- O que existe são decisões e conseqüências. Ou seja, existe responsabilidade por aquilo que se decide. E existe aprendizado com tudo isso. Podemos dizer que existe um mais certo e um menos certo. E a gente sabe disso. Chamamos de consciência.
- Todo mundo tem isso?
- Todo mundo. Só que tem gente que faz um verdadeiro contorcionismo de consciência para adaptar a realidade ao que deseja. Para poder, por exemplo, se convencer de quem tem o direito de prejudicar os outros.
- E cada um assume as conseqüências do que faz?
- Sem dúvida. Mais cedo ou mais tarde.
- João?
- Sim. Não sei se você respondeu a minha pergunta. Mas eu gostei. Me fez pensar.
- A resposta você já tem. Ela só não é exatamente o que você esperava.
- Acho que sim. Obrigado.
- Disponha. Quando precisar me chame.
- Tá certo, eu... Já foi... É... Então tá... Valeu...

(Continua na série de posts INVENTÁRIOS)

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

IMPERMANÊNCIAS 13


O amor insubstantivo



No conto "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius", o escritor argentino Jorge Luis Borges fala de um mundo misterioso chamado Tlön onde a linguagem dos habitantes não usa substantivos. Os habitantes desse mundo não vêem as coisas de forma espacial, apenas temporal. Assim, as coisas são designadas através de verbos, numa espécie de continuum.

Lá não existe a lua, mas o lunar, não existe o rio, mas o duradouro-fluir. E o amor, nesse mundo, seria o amar. Nunca estanque, nunca estático, nunca contingente, apenas fluido e em movimento.

Talvez os habitantes de Tlön tenham chegado a um conceito mais próximo das coisas como realmente são e, por extensão, do que é o verdadeiro amor: um eterno mover-se.




segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

IMPERTINÊNCIAS 13


Todos os sempres

Sempre houve essas cartas
Viradas sobre a mesa.
Sempre houve esses rostos,
Nos censurando sobre a vida.

Sempre houve a dificuldade,
O perigo, e promessas não cumpridas.
Sempre houve o tempo escasso
E essa espera que não acaba nunca.

Sempre houve o nada ao nosso redor
E sempre houve todas essas coisas
Que não nos servem e que a vida,
Meio sem querer, tenta nos impor.

Sempre houve a pressão e a cobrança,
O medo de errar e a dificuldade enorme
De distinguir o fim e o começo.
Pois, sempre houve mais dúvidas do que certezas.

Sempre houve um passado e um futuro,
Enquanto o presente escapa rápido
Por entre os nossos dedos,
Levando aquilo em que acreditávamos.
Sempre houve menos do que queríamos
E mais do que podíamos suportar.

Sempre houve a vida e a morte.
Sempre houve caminhos
Que nunca levaram a lugar algum
E por isso nunca estivemos perdidos.

Sempre houve amor e esperança,
Sempre houve dedicação e esforço,
Mas ninguém nos viu crescer
Porque sempre houve essa triste cegueira.

Sempre houve todos esses preconceitos
E a facilidade dos julgamentos apressados.
Quando esperávamos alguma compreensão,
Sempre houve acusações e braços cruzados.

Sempre houve o céu azul e o mar
A vontade de conhecer e de viajar.
Sempre houve estradas se abrindo,
Mas onde deveria haver portas,
Nós encontrávamos janelas
E quase nenhuma vontade de pular.

Sempre houve a vontade de desistir
E sempre houve uma saída mais fácil.
Mas sempre haverá mais força
Dentro de tudo aquilo que temos sido
Porque sempre haverá mais sonhos
Do que uma vida possa destruir.

Wilson Gasino

domingo, 24 de fevereiro de 2008

INVENTÁRIOS 12


Aporia





(Continuação da série de posts “Inventários”)


- A palavra é "ensimesmado" - propôs Beth.
- Essa é muito fácil. A própria palavra já diz. É estar dentro em si mesmo. Meditando, refletindo ou qualquer coisa assim. – respondeu Ismael.
- OK. Tá certo. Manda uma.
- "Solipsismo".
- Isso existe mesmo ou você ta inventando?
- Existe sim. É um termo filosófico.
- Aí fica difícil. Você fica puxando esse seu dialeto filosofal...
- Você disse que valia e eu aceitei que você também usasse termos de psicologia.
- OK, OK. Não sei. Que diabo é isso?
- É uma corrente teórica que diz que todo e qualquer conhecimento só pode ser fundamentado na experiência pessoal.
- É um egocentrismo filosófico.
- É, de certa forma é. Vai lá. Vê se agora traz uma difícil.
- "Epônimo".
- Hmmmm. Nessa você me pegou. Eu sabia, mas não lembro mais. Que bicho é esse?
- É quando o nome de alguém vira nome de lugar, teoria ou até de doença. Nesse último caso eu estudo bastante. Síndrome de fulano, mal de sicrano de tal e por aí.
- Como Doença de Chagas?
- Isso mesmo. E a palavra também pode ter outro sentido que é quando você coloca um “ismo”. Você pode dizer que fulano é “lulista” ou “carlista” ou “malufista”.
- Bacana.
- Ah, essa é fácil...
- Não, eu só tava comentando.
- Rsrsrsrs. Eu sei, bobo.
- Tá bom. Aí vai, hein: "aporia".
- Faço a menor idéia do que é esse troço.
- É quando um raciocínio leva a uma contradição insolúvel ou um paradoxo, onde não há saída. Pode ser um tipo de sofisma, por exemplo.
- Ainda tô boiando.
- Vou dar um exemplo: se o maior amor é o amor incondicional, como ele pode existir se ele parte de uma condição que é o objeto a quem ele é dirigido. Ou seja, ou não existe amor incondicional ou esse amor não é dirigido a ninguém, nem mesmo à Humanidade, por exemplo. E como tal é fútil e não passa de um baita de um egoísmo que nada constrói.
- Não sei ainda se entendi direito, mas é a minha vez e agora eu tenho uma arma fatal: "flunfa".
- Fácil demais. Essa palavra virou modismo. Tem até site na internet sobre isso. É a sujeirinha que fica no umbigo da gente.
- Rrrrrrrrrrrrrrrr. Pensei que ia pegar você.
- Quem vai pegar sou eu. Lá vai a bomba: "patognomônico".
- Ah, não. Que pôrra é essa? Você só pode ter inventado isso, seu canalha.
- Hahahahahaha.
- Inventou, não inventou?
- Hahahaha, não, existe mesmo, hahahaha, é só olhar no dicionário. E não vale fazer cócegas.
- Rsrsrsrs. Agora você me paga. Rsrsrs. Patoqueopariu o cacete. Tá lenhado comigo. Rsrsrs.
- Hahaha. Eu me rendo, eu me rendo, mas cócegas não. Hahahaha.

(Continua na série de posts “Inventários”)

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

IMPERMANÊNCIAS 12


Le Cool




Pra quem gosta de dar uma olhada em coisas diferentes em design e web, aqui vai uma dica: a revista Le Cool. Ela tem edições para oito cidades européias, falando de Barcelona, Madrid, Lisboa, Amsterdam, Londres, Istambul, Milão e Roma.

Uma das coisas mais legais é que a revista corre na horizontal pela barra de rolagem, mudando a perspectiva que a gente normalmente tem ao acessar conteúdos pela internet. É um olhar diferente. Bem interessante.



Em termos de conteúdo. A revista traz matérias curtas, pequenas entrevistas e uma grande agenda do que rola de mais interessante em cultura e entretenimento nestas cidades. O design é muito bacana. A dica veio de Iansã Negrão, que trabalha na área de design e diagramação no jornal A TARDE. Vale dar uma boa olhada: http://lecool.com/


Coisa Semanal


Outra dica bacana é a revista Coisa Semanal.
Publicidade, moda, cultura, arquitetura, flash mob e outros assuntos interessantes permeados por um ótimo design e muitos links é a receita dessa revista brasileira que também usa a rolagem lateral. Ela bebe direto na fonte da Le Cool, mas tem muita coisa legal e vale a pena dar uma passada por lá: http://news.ivv.com.br/flyer/default.asp?query=125635;1767;40


quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

IMPERTINÊNCIAS 12


Não só comida


Food Porn! Muito bacana a matéria da Folha de SP hoje sobre o tema (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2102200827.htm). Pra quem não conhece o termo, ele se refere ao ato de retratar a comida de forma provocante, chegando muitas vezes ao erotismo. A internet tem muita coisa sobre o assunto, a começar pelo próprio Flickr (http://www.flickr.com/), onde você pode fazer uma busca com o termo "food porn" e achar muitas coisas bonitas.


Há uma relação muito íntima entre sexo e comida. Quem não lembra de cenas picantes no cinema provando isso? De Império dos Sentidos a 9 e 1/2 semanas de Amor, passando por O Último Tango em Paris e chegando até o simbolismo velado de A Festa de Babette. E o que dizer de Delicatessen ou o O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante?


A propaganda é mestra em utilizar imagens maravilhosas como a gotinha de suor escorrendo sob uma "morena" garrafa cheia de curvas insinuantes. E realmente aqueles supercloses das propagandas deixam a gente com água na boca.

A comida tende a mexer com todos os nossos sentidos. O tato, a visão, a audição, o paladar e o olfato. Quanto mais sentidos envolvidos, maior o número de sensações provocadas e maior o prazer despertado. Daí, pois que os grandes chefs de cuisine capricham tanto no visual e na textura de seus pratos. Isso pra não falar em louça e prataria que ajudam a explorar essa festa dos sentidos.


Talvez, a única atividade humana que possa provocar tantas (ou mais) sensações e prazer seja mesmo o sexo. Variações sobre o tema ficam por conta da critividade e da sensibilidade das pessoas envolvidas.
Mas é isso. Pra quem quer saber mais sobre o tema, aqui vão alguns endereços de sites:
http://www.slashfood.com/

http://www.foodporn.com/

http://www.thefoodpornographer.com/


O TEMPERO DA VIDA











Uma última dica: o filme Tempero da Vida (Politiki Kouzina), do grego Tassos Boulmetis, de 2003, faz um paralelo belíssimo entre as emoções humanas e os condimentos. Vale muito a pena ver.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

INVENTÁRIOS 11

Pelo MSN


(Continuação da série de posts "Inventários")


Bethfuoco@gmail.com
Ismaeldeva@gmail.com








Beth diz:
Oi...

Ismael diz:
Oi!

Beth diz:
Pode tcl?

Ismael diz:
Posso sim.

Beth diz:
Foi muito legal te conhecer ontem.

Ismael diz:
Também gostei. A gente não parava mais de conversar. O bar fechou e a gente nem viu a hora passar.

Beth diz:
É mesmo. Foi muito bom. O que vc tá fazendo agora?

Ismael diz:
Tava ouvindo música e preparando uma aula.

Beth diz:
É? De que?

Ismael diz:
Sobre a ética de Spinoza. Um filósofo holandês do século XVII. Muito legal.

Beth diz:
E tava ouvindo o que?

Ismael diz:
Beto Guedes. O disco Alma de Borracha. Eu gosto bastante.

Beth diz:
Eu também.

Ismael diz:
... você não precisa chorar...

Beth diz:
... não precisa ficar como está...

Ismael diz:
Rsrsrs

Beth diz:
Massa.

Ismael diz:
E vc, tava fazendo o que?

Beth diz:
Acabei de rever meu filme favorito. Foi a centegésimilésima vez.

Ismael diz:
Qual?

Beth diz:
Zelig, do Woody Allen.

Ismael diz:
Também gosto bastante.

Beth diz:
Eu me identifico com ele.

Ismael diz:
Com o Woody?

Beth diz:
Não. Huahuahuahua. Com o personagem Leonard Zelig, o homem camaleão.

Ismael diz:
Por quê?

Beth diz:
Porque ele sempre tá tentando se ajustar, se transformando naquilo que as pessoas em volta querem. Pra agradar as pessoas. Ser aceito por elas.

Ismael diz:
Interessante. Você é assim?

Beth diz:
Já fui mais. Hoje tô tentando me livrar disso. Mas é difícil. Quando vejo, me pego fazendo isso.

Ismael diz:
Hmmm

Beth diz:
Tem um diálogo interessante, quando a psiquiatra hipnotiza ele e pergunta porque aquilo. Ele responde que se sente seguro. Que é mais seguro ser igual aos outros.





Ismael diz:
Ah. Lembrei de uma coisa engraçada.

Beth diz:
O que?

Ismael diz:
Quando ela pergunta pra ele como tudo começou. E ele diz que foi quando, na escola, pessoas muito inteligentes perguntam se ele já tinha lido Moby Dick. E ele, com vergonha, mente que já.

Beth diz:
Huahuahua. Moby é o seu livro preferido, não?

Ismael diz:
É. Coincidência, né?

Beth diz:
É citado mais duas vezes no filme. Inclusive no final, quando ele sente pena de morrer logo depois de começar a ler o livro e ir sem saber o final.

Ismael diz:
Você se sente mal como ele?

Beth diz:
Às vezes. Tem tanta cobrança.Querem que a gente seja igual e ao mesmo tempo diferente. Querem que a gente chame a atenção e ao mesmo tempo passe despercebido na multidão. Fica difícil.

Ismael diz:
Você não devia se preocupar tanto com o que os outros pensam.

Beth diz:
Mas como eu posso viver em grupo sem me preocupar.

Ismael diz:
Bom, eu acho o seguinte: quem me ama me aceita como eu sou. E quem não me ama não merece que eu me preocupe com o que pensa. Então, eu fico tranqüilo.

Beth diz:
As pessoas julgam muito.

Ismael diz:
Se vc tem tanta preocupação é porque também julga os outros e, principalmente, também fica se julgando, se cobrando...

Beth diz:
É verdade. Preciso cuidar mais disso.

Ismael diz:
Fica difícil ser feliz assim. É muito cansativo viver pelos olhos dos outros.

Beth diz:
Eu não sei direito o que é ser feliz.

Ismael diz:
Lembrei que, no filme, o pai do Zelig diz pra ele, antes de morrer, que a vida é um pesadelo sem sentido.

Beth diz:
É. E depois ele vai à sinagoga e pergunta ao rabino qual o sentido da vida. E o rabino responde em hebraico. Mas o Zelig não entende hebraico. Aí o rabino oferece pra ele aulas de hebraico por U$ 600.

Ismael diz:
Rsrsrs. Muito bom.

Beth diz:
Woody Allen é demais.

Ismael diz:
O que vc acha da gente tomar uma cerveja na sexta.

Beth diz:
Fechado!!!

Ismael diz:
Blza. Agora preciso voltar pro Baruch Spinoza. Valeu. Bjs

Beth diz:
Bjs. Bjs. Bjs

Ismael diz:
Tchau, Beth Zelig.

Beth diz:
Tchau, Ismael Spinoza.


(Continua na série de posts "Inventários")


terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

IMPERTINÊNCIAS 11


A Imperatriz

A carta de número 3 do Tarô é a Imperatriz, que representa o princípio feminino em sua forma mais exuberante, ligado à natureza luxuriante, à reprodução, à fertilidade, ao sexo, à riqueza e à inteligência sutil.
Ao contrário da Papisa (ou Sacerdotisa) que é intuitiva, a Imperatriz tem os pés no chão, conhece o mundo concreto e sabe lidar com ele utilizando, da melhor forma possível, todos os seus atributos físicos e intelectuais. Se a Papisa representa a gestação, a Imperatriz é a geração e a criação.
É o princípio feminino quando mais se aproxima do masculino, tornando-se ativo e criador. Na comparação com a mitologia clássica, o paralelo seria com a deusa do amor e da beleza Vênus (ou Afrodite para os gregos). E também tem proximidade com a deusa mãe egípcia Ísis
Numa realidade mais próxima à nossa, o arquétipo da Imperatriz pode ser identificado com o orixá africano Iemanjá, a rainha das águas. É a grande mãe, a mãe de toda a vida, com sua riqueza profunda e sua postura ao mesmo tempo cheia de generosidade e cobrança.


Na mitologia grega, a deusa Vênus nasceu quando Cronos, deus do tempo, cortou os órgãos sexuais de seu pai Urano, o Céu, e os atirou ao mar. O esperma de Urano formou uma espuma branca que, misturada ao mar, deu origem à deusa. Assim, ela é a própria beleza das ondas e a leveza da espuma. Do casamento do Céu com o Mar, num corte (lapso) do Tempo, ela nasce. Vênus é mãe de Eros, o amor, o impulso erótico. É através de Eros que todas as criaturas se unem para se reproduzir e que a vida se perpetua. Assim, a raiz do arquétipo A Imperatriz é a própria energia que une princípios opostos para que juntos criem algo novo e, então, os faz florescer.




segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

IMPERMANÊNCIAS 11


UMA SOMBRA NA JANELA

Naqueles dias ele andava precisando de verdades ou, então, ao menos, de novas mentiras. Ela buscava algo além das próprias dúvidas, mesmo que não houvesse nenhuma certeza à espera.
Nessa noite, ele pensou que não haveria outra noite tão escura e desorientada. Mas ela sorriu, pois também pela sombra se pode conhecer a posição do sol.
Quando ele a viu, o sorriso dela fez com que todas as perguntas perdessem o sentido. Nessa noite, a música que ela ouviu nos olhos dele acalentou um pedaço de paraíso. O suficiente para que ele começasse a falar sobre o que vivera até então. O suficiente para que ela tivesse vontade de ouvir algo que a fizesse esquecer tudo o que passara.
Ele contou como preferira as cicatrizes às rugas, as dores aos temores, os prazeres às antecipações e a vida à espera. Ela esqueceu de como zombara do tempo e sofrera cada um dos duros golpes chamados traição, desprezo, desamor, tédio, costume, solidão e esquecimento. Ele a convidou para dançar e falou das tantas vezes em que dançara sem par. Ela cantou nos ouvidos dele, mesmo sabendo que ele nada escutava, tamanho o encanto que ela causava.
Naquela noite, havia enormes silêncios e enormes vazios, mas havia também promessas no ar, e expectativa, e ansiedade, e esperança e o desejo de encontro e plenitude com que se sonha sempre. Havia o cheiro da pele e o toque leve dos cabelos. Havia um balanço como o de um navio num mar de sede, suor e saliva. O encontro traçado entre dois corpos. O destino de tudo aquilo que supera sua própria condição e, num efêmero instante, almeja a eternidade, correndo o risco da fantasia, por acreditar, por ousar, por desafiar toda a racionalidade, ou, simplesmente, apenas por querer.
Assim, naquela noite, os dois construíram seus próprios labirintos para se perderem, buscando naquele momento de fuga um atalho para a realidade. Numa cidade de muitas janelas e poucas portas, fingiram ser eles mesmos, para poder se encontrar.
E enquanto ela sentia o gozo tomando conta e depois indo devagarinho como música que vai se acabando aos poucos, ele a ouvia dizer: faça o que quiser comigo, mas não me deixe.
E a essa noite, outras muitas se seguiram.
Porém, o tempo os aproximou tanto que eles passaram a confundir seus nomes, papéis, idéias, falas e cheiros. E como o ego não suporta por muito tempo a morte proposta pela paixão, houve a tentação do amor. Mas tudo veio depressa demais, de surpresa, e as brigas se tornaram rotina amarga, que tira dos olhos a possibilidade de enxergar o outro. E ele pediu perdão por não saber perdoar. E ela pediu um tempo para que o tempo, assim pudesse passar e não mais de surpresa. E o tempo, então, passou.
. . . . .

Ele esperava que as noites fossem menos frias. Ela esperava que os rostos não lhe trouxessem tantas lembranças. Ele ouvia música em silêncio. Ela cantava sozinha.
Ele queria que ela estivesse morta, para que a pudesse beijar sem que os olhos dela fizessem tantas perguntas. Ela queria que ele fosse embora para que pudesse sentir falta dos seus lábios, beijando outros homens. Ele precisava de companhia. Ela queria estar só.
Ele queria gritar, queria ser ouvido por ela. Ela queria furar os olhos dele com o olhar. Ele se escondia no escuro. Ela procurava uma luz.
Um amor é redentor de outro amor que já foi redentor de outro amor, que também já virou dor. E ela o amava com ódio e paixão, e dor e loucura e desespero. E ele a amava com devoção e entrega, e desejo e calma.
Ele caminhava pelo corpo dela. Ela ouvia-o pulsando dentro de si. Ele sentou-se na cama. Ela acendeu um cigarro. Ele foi até a janela. Ela levantou-se a procura de um cinzeiro.
Por um segundo, ele estendeu o braço e quase tocou o rosto dela, tentando atravessar milhões de quilômetros. Mas era tarde. Ela já não estava mais no mesmo tempo que ele. Seu tempo já era outro, embora aquele fosse o mesmo quarto vazio, o mesmo sonho perdido, e a mesma noite escura e desorientada em que ela se deitara sozinha ao lado dele, com uma sombra na janela.

Wilson Gasino

domingo, 17 de fevereiro de 2008

INVENTÁRIOS 10


Despedidas





(Continuação da série de posts "Inventários")

Azul, vermelho, amarelo. Cinza, muito cinza. Em tudo. Em cima, em baixo, no chão. Cinza no chão. E gosto de pão velho e mostarda amarela. Cheiro de pó. Cheiro de mofo, cheiro de naftalina, Cheiro dos vestidos da mãe.
E a vista da Baía de Todos os Santos dos fundos da Aliança Francesa. O Porto da Barra, a Ladeira do Acupe, Brotas e a praia do Flamengo. Catussaba... É Catussaba e a Federação e o Rio Vermelho e o sorvete na Ribeira nos fins de tarde do sábado. E a Praia do Forte nos domingos intermináveis.
Porres no Pós-Tudo, acarajé da Dinha e sanduíche de pernil no Largo Dois de Julho. Sensação de liberdade em Lençóis, cheiro de lança-perfume em Porto Seguro e o primeiro orgasmo de verdade, com Daniel, em Morro de São Paulo.
Vermelho, amarelo e azul e cinza. Vermelho e cinza. Amarelo. E azul.
E tantas músicas. Chico, Benjor, Robertão, Los Hermanos, Beatles, Lô Borges e tanta coisa e nada mais parece ser bom. Todas as músicas aborrecem. Todas. As novas e as antigas. Tudo passou a ser insuportável nos últimos dias.
E as lembranças continuam indo e vindo, girando, girando. Beth tenta se agarrar em alguma coisa. Boas lembranças. Momentos que valeram a pena. Pessoas, músicas, lugares, filmes, comidas, sensações.
Mas nada é suficientemente forte. Nada a faz se sentir viva.
Amarelo, vermelho e azul. Muito cinza. Stella, Cíntia, Américo e Daniel. Pai, mãe, Vó Helena. Mira. Teresa e Dinho. Eu...
Amigos do Orkut, e-mails antigos, scraps, conversas perdidas no MSN, fotos, bilhetinhos em folhas de caderno guardados por tantos anos. Nada tem mais graça.
Ela acha que só a dor pode fazer com que se sinta viva. E liga o chuveiro e senta no chão.
Cinza... Eu... Catussaba...
Beth pensa: - quero me sentir viva.
E a pequena lâmina desliza pelo pulso.
Vermelho...



(Continua na série de posts "Inventários")

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

IMPERMANÊNCIAS 10


Leminski


Esse polaco genial sabia das coisas. Lembro dele sentado no Café do Estudante, em Curitiba, sempre cercado de gente, ouvindo e falando muito. O que mais me chamou a atenção de início foi o bigode gigante. Demorei um pouco para absorver a profundidade da sua poesia direta e descomplicada. Para mim, ele é um pouco a cara de Curitiba, cidade onde morei por 20 anos.

Com vocês: Paulo Leminski.




Sintonia Para Pressa e Presságio
"Escrevia no espaço
Hoje grafo no tempo,
Na pele, na palma, na pétala,
Luz do momento.
Sôo na dúvida que separa
O silêncio de quem grita
Do escândalo que cala,
No tempo, distância, praça,
Que a pausa, asa, leva
Para ir do percalço ao espasmo.

Eis a voz, eis o deus, eis a fala,
Eis que a luz se acendeu na casa
E não cabe mais na sala."

Incenso Fosse Música
Isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além

Paulo Leminski

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

IMPERTINÊNCIAS 10

Beiçola do mal

O cabelo do ator espanhol Javier Bardem no novo filme dos irmãos Coen, Onde os Fracos não têm Vez (No Country for Old Men), é uma coisa engraçadíssima. É mais marcante ainda do que o olhar malévolo e a voz cavernosa do personagem.

Conta a lenda que foi o ator Tommy Lee Jones quem trouxe para os diretores uma fotografia de um sujeito mexicano, do começo dos anos 80, com aquele cabelinho. Javier detestou o penteado, mas o fato é que a marca ficou e é um dos destaquse do filme, fazendo contraponto com a brutalidade do psicopata Anton Chigurh.


E se cabelinho conta, ele, que disputa o Oscar de melhor ator, deve lembrar de John Travolta em Pulp Fiction (indicado para melhor ator). Volta por cima com penteado estranhíssimo.

Quem ficou feliz foi o “Seu Beiçola” da grande família, que está lançando moda. Para completar o figurino, só ficou faltando as camisas do Agostinho.

O final do filme é confuso, mas vale a pena pela discussão sobre a inexorabilidade do destino (e pelo cabelinho, é claro – puro Beiçola).

Em tempo: o título do filme é baseado no poema "Sailing to Byzantium", de W.B. Yeats. Segue abaixo um trecho do poema:

“That is no country for old men. The young
In one another's arms, birds in the trees
- Those dying generations - at their song,
The salmon-falls, the mackerel-crowded seas,
Fish, flesh, or fowl, commend all summer long
Whatever is begotten, born, and dies.
Caught in that sensual music all neglect
Monuments of unageing intellect.”


quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

INVENTÁRIOS 9


Sublimação





(Continuação da série de posts "Inventários")

Beth tem 21 anos. Portanto, falamos de um tempo cerca de sete anos antes de ela estar parada em frente à porta, segurando a chave dentro da fechadura. Falta pouco mais de um ano para Beth conhecer Ismael e alguns meses para ela encontrar-se com o Bibliotecário e se formar em psicologia.
Ela está sentada sobre as pernas dobradas, no chão, embaixo do chuveiro.
A água quente escorre e vai levando para o ralo o sangue que flui dos pulsos abertos. Dor e confusão. Ela se sente como se não fosse ela mesma.
No dia seguinte, iam perguntar entre os colegas de faculdade o que teria levado a garota inteligente e reservada, que usava óculos coloridos e tinha sempre tiradas engraçadas e irônicas, a fazer isso.
- Covardia ou coragem?
- Desespero ou decisão?
- Amor ou ódio?
- Falta ou excesso?
Beth, definitivamente, não teria respostas para essas perguntas. Ninguém teria. Ninguém sabia o que se passava dentro da sua cabeça. Ninguém adivinharia sua alma.
Por fora, a moça de bom senso e posições de vanguarda nas discussões com os colegas. Por dentro, um ser preso entre as grades da busca fatigante de aprovação dos outros. Uma jaula sufocante. Um manicômio de uma só pessoa. A mais alta torre de castelo.
Naquela noite, a amiga Cíntia não viera como prometera. Nem a cocaína. Talvez, se tivesse cheirado a droga, Beth teria adiado para a manhã seguinte aquela cerimônia de sangue. Talvez. Nada mais do que talvez.

Quando era adolescente, Beth sabia muito bem o que precisava para ser feliz. Todos os filmes e livros, as amigas e os pais haviam lhe passado a fórmula infalível. E ela descobrira, a duras penas, que isso não funcionava para ela. A aparência de felicidade não bastava.

Já na faculdade, Beth aprendeu que precisaria saber quem ela era para descobrir o que a faria feliz. Mas ela nunca conseguia saber quem era.
Ela não era Beth Fuoco, pois esse era só um nome e poderia ser de qualquer um. Não era a estudante de psicologia, porque aquele era apenas um estado passageiro. Não era o seu grupo de amigos ou seus pais, seu endereço, local de nascimento ou data. Isso tudo era um amontoado de referências externas, muitas vezes contraditórias e que montavam uma colcha de retalhos sobre a sua identidade. Mas não dependiam dela.

Ela não torcia nem para o Bahia, nem para o Vitória, e só se interessava por futebol em época de Copa do Mundo. Não era negra, embora não fosse totalmente branca, já que sua bisavó materna tinha sido escrava. Também não era portuguesa, italiana ou espanhola. Salvador era onde tinha nascido, mas ela se identificava apenas com uma parte da cidade.
Achava que a sua essência não era o seu corpo porque a carne era algo do mundo e ela se considerava apenas passageira por aqui.
Beth chegou a pensar que sua verdadeira identidade seria o conjunto dos sonhos, desejos, pensamentos, emoções e sentimentos. Seu mundo interno. Mas isso tudo mudava tanto. E tudo estava sempre relacionado a algo externo, não sendo, portanto, algo vindo só dela. Tudo o que ela tentava ver como um fundamento próprio do seu ser acabava sendo sempre relativo.
Ficava na dúvida se ela era um algo totalmente vazio lá no fundo, ou um monte de coisas desconexas, fragmentadas, caleidoscópicas, vertiginosamente girando, girando, girando em turbilhão.

Não sabia efetivamente como havia chegado ali, àquela posição, embaixo do chuveiro. Não tinha sido exatamente uma decisão. Talvez mais um impulso. Talvez para ver como era. Não sabia onde queria chegar. Teve vontade. Talvez só isso.
Já estava tudo borrado. A vista, o chão do banheiro, a calcinha, as sensações, o raciocínio, o som distante das batidas na porta. Já sentia o mundo todo se esvaindo e descendo pelo ralo quando Cíntia e Cris arrombaram a porta do banheiro e a encontraram ali.

Pensou em dizer olá. Tentou mexer a boca, mas a cabeça pendeu e o corpo desabou para o lado. Não sou este corpo – pensou ainda um milésimo de segundo antes do desmaio – mas este corpo me determina.

(Continua na série de posts "Inventários")

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

IMPERMANÊNCIAS 9

“A te fortuna non mancherà”

Barbeiro é o sujeito a quem você dá o pescoço para que ele passe uma navalha afiadíssima, numa demonstração total de confiança, que você talvez não ousasse dar nem à sua mulher ou ao seu melhor amigo. Essa posição de vulnerabilidade constrói a mística do personagem principal do filme "Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet", de Tim Burton.

Espécie de lenda urbana da velha Londres, contemporâneo de Jack o Estripador, Sweeney Todd é personagem de contos antigos e de um musical da Broadway, no qual Burton se inspirou. É bom na degola e insaciável em sua sede de sangue.

Fui assistir ao filme já esperando a repetição de uma fórmula batida de Burton: cenários sombrios, humor mórbido e final indisfarçavelmente melancólico, mas feliz. Essa fórmula sempre ganhou mais força com a presença do ator Johnny Depp, que já tinha cinco parcerias com Burton e que se encaixa bem no estereótipo de anti-herói de ar infantilizado e cruel.

Mas Depp está diferente de Edward Mãos de Tesoura, Ed Wood, Ichabod Crane (A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça), Willy Wonka (A Fantástica Fábrica de Chocolate) e Victor Van Dort (A Noiva Cadáver). As caras e bocas são as mesmas, mas o olhar é bem mais sombrio e a gaiatice é contida. Não que mereça um Oscar, mas pelo menos nos dá a sensação de não estarmos assistindo ao mesmo filme.

Talvez só essa pequena diferença de interpretação (Johnny Depp não tão Johnny Depp) e o final façam a diferença (mas não muito). Porque Helena Bonham Carter é novamente Helena Bonham Carter e Tim Burton é novamente Tim Burton. Se isso é bom ou ruim, cabe a cada um decidir.


Fígaro

Difícil fazer uma comparação de Sweeney Todd com o outro barbeiro famoso, o de Sevilha. Fígaro, criado pelo compositor italiano Gioacchino Rossini para a ópera o Barbeiro de Sevilha, mostra outra característica da profissão: a capacidade de se intrometer na vida dos outros, em intrigas e fofocas. Mais uma vez fazendo uso da confiança daqueles que se sentam em sua cadeira como se fosse um divã de analista.

Fígaro é o factotum da cidade, o alegre alcoviteiro a quem a sorte nunca faltará por procurar sempre ajudar as pessoas, por mais que se intrometa muito além do papel de mero observador. Sempre haverá uma barba, uma sangria, uma peruca a fazer. E sempre haverá alguém aconchegando-se em sua cadeira e lhe confiando os seus mais profundos segredos, ou, o que é pior, os dos outros.

"Ah, bravo Figaro!
Bravo, bravissimo;
a te fortuna non mancherà"

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

IMPERTINÊNCIAS 9


O Mundo

Eduardo Galeano (de O Livro dos Abraços)

"Um homem da aldeia de Neguá, no litoral da Colômbia, conseguiu subir ao céus. Quando voltou, contou. Disse que tinha contemplado, lá do alto, a vida humana. E disse que somos um mar de fogueirinhas.
- O mundo é isso - revelou.
- Um montão de gente, um mar de fogueirinhas. Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo. "

domingo, 10 de fevereiro de 2008

INVENTÁRIOS 8


Phantasmagoria



(Continuação da série de posts Inventários)

- Quem é você? Perguntou Beth ao homem de terno branco sentado aos pés de sua cama.
- Você sabe quem eu sou. Tenho vários nomes, rostos e formas – Respondeu o homem, que aparentava meia-idade e tinha as pernas cruzadas mostrando o sapato branco brilhante. Se não estivesse tão assustada, Beth acharia aquilo francamente cafona.
- Isso é um sonho? Só pode ser. Eu não lhe conheço, meu senhor. O que o senhor está fazendo aqui? No meu quarto... Na minha cama...
- Eu teria várias respostas para essa sua pergunta, inclusive uma que questiona as suas noções de sonho e realidade, de sono e vigília, mas, por hora, vou deixar que você mesma decida isso.
- Olha, o senhor deve ser algum maluco que entrou aqui. Se pensa que estou com medo, não estou. Vou gritar e as minhas colegas que moram comigo vão vir correndo e vão chamar a polícia... É melhor o senhor ir embora correndo. Já.
- Eu não sou maluco, suas amigas não estão em casa e você não precisa ficar preocupada. Estou aqui apenas para me apresentar e colocar meus serviços à sua disposição.
- Como assim: à minha disposição. O que o senhor faz?
- Eu sou o Bibliotecário. Eu tenho todas as respostas do mundo. Você tem, nos últimos tempos, chamado por mim. Pois bem, agora eu estou aqui.
- Hahahahahahaha. Isso deve ser algum tipo de brincadeira. Ou eu comi alguma coisa estragada e estou tendo uma alucinação. Olha, vou fechar os olhos e dormir de novo e espero que você não esteja mais aí, porque eu vou gritar e gritar muito.
- Já disse que, no fundo, você sabe quem eu sou e foi você mesma quem me chamou. Estou aqui para ajudá-la. Não precisa ter medo. Você deve aproveitar essa oportunidade.
- Se você realmente tem a resposta pra tudo, me diga o que eu comi hoje de manhã quando acordei.
- Nada.
- Nada?
- Sim. Você acordou tarde e ficou sem comer até que saiu para almoçar.
- Isso pode ser só uma coincidência. Me diga, então, como era o nome do cachorrinho que eu tive quando era criança?
- Fred.
- E quanto é sete bilhões e novecentos e cinqüenta milhões vezes dois milhões e quinhentos e três mil?
- Dezenove quatrilhões, oitocentos e noventa e oito trilhões e oitocentos e cinqüenta bilhões.
- Peraí – Beth levantou e foi até o computador, abriu o programa de calculadora e fez a multiplicação. O resultado conferia.
- Isso deve ser um sonho mesmo. Só pode ser. Ou melhor, um pesadelo. Olha, melhor você ir embora, senão eu vou começar a chorar.
- Você não acha que já chorou demais ontem à noite.
- Ai, meu Deus. Você sabe de todas essas coisas mesmo?
- Sei sim.
Beth suspirou. Sentou-se novamente na cama e pôs se a pensar.
- Então quais são as respostas que você tem pra mim? Quais as respostas que eu preciso na minha vida?
- Ah, agora estamos chegando a algum lugar. Bom, a primeira coisa que eu devo lhe dizer é que, antes de conhecer a resposta, você precisa saber direito qual é a pergunta. Aí, você pode me chamar que eu virei para responder. Isso basta por hora. Agora feche os olhos, que eu já vou indo.
- Mas espere. Como é o nome do senhor? Como eu posso chamá-lo?
- Pode me chamar de João. Quando quiser falar comigo, bata três vezes o pé esquerdo no chão e chame pelo meu nome. Ah, e chega desse negócio de senhor. Eu não gosto disso, sabe? Confunde as coisas...
- Hã?
- Não esqueça da pergunta.
- Sim, sim, vou pensar, vou pensar.
- E feche os olhos...
- Certo, certo. Já fechei...


(Continua na série de posts Inventários)

PS.: Trecho do poema "Phantasmagoria" de Lewis Carroll

“The Third was written to protect

The interests of the Victim,

And tells us, as I recollect,

To treat him with a grave respect,

And not to contradict him.”

“That’s plain”, said I, “as Tare and Tret,

To any comprehension:

I only wish some Ghosts I’ve met

Would not so constantly forget

The maxim that you mention!”

“Perhaps”, he said, “you first transgressed

The laws of hospitality:

All Ghosts instinctively detest

The Man that fails to treat his guest

With proper cordiality.

“If you address a Ghost as ‘Thing!’

Or strike him with a hatchet,

He is permitted by the King

To drop all formal parleying

And then you’re sure to catch it!

sábado, 9 de fevereiro de 2008

IMPERMANÊNCIAS 8


To be or not to be me

Eu já não sou mais aquele que eu nunca fui.
Já não mais serei aquele que poderia ter sido,
Se eu não fosse eu mesmo

Já não existe um eu,
Já não existe uma raiz,
Um lugar, uma alma,
Já não há um lar para mim
Dentro de mim mesmo
Estou fugindo,
Estou me desencontrando

To be or not to be me
Or you, or he, or she, or it
Or they, or everyfuckingbodyelse

That’s the question
But it’s not me, anyway

Wilson Gasino

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

IMPERTINÊNCIAS 8


Pós-Carnaval




Esta é uma das minhas tiras preferidas. Principalmente pelo nome do caranguejo.

Sempre fui fã de tiras, gosto de quase tudo, de Calvin a Mafalda, de Hagar às cobras do Veríssimo. Mas o que eu mais gosto mesmo é da fase brasileira dos anos 1980 e início dos 90, com Los Três Amigos Angeli, Glauco e Laerte e outras figuras como o Gonzales, Adão, Spacca et alii.

Não dá para deixar de citar também o mestre Ziraldo, com quem tive o prazer de tomar alguns porres quando trabalhava em Londrina. Uma referência como artista, como humorista, como escritor, como jornalista e como ser humano.

E não posso esquecer também dos colegas de A TARDE, Cau Gomez e Simanca. Talentosos, reconhecidos e duas figuras fantásticas. Também tive o prazer de tomar alguns porres com eles. São dois caras muito engraçados.


Cau e a Megasena
Uma das histórias mais engraçadas do jornal A TARDE é a de Cau Gomez e a Megasena. Parece coisa de comédia de cinema.
Aconteceu mais ou menos assim: Cau tinha jogado na Mega e não tinha conferido o resultado. O prêmio era dos gordos, acumulados. Aí ele passou numa casa lotérica e pegou um daqueles impressos com o resultado, que se parecem muito com o volante dos jogos.
Na hora em que ele foi conferir, não conseguia encontrar o volante do jogo. Procurou, procurou e acabou se confundindo e pegando o impresso com o resultado. Entrou na internet e pronto!!! Estava tudo lá: os seis números certinhos. Inacreditável.
Mineiro tranqüilo, Cau conseguiu conter a euforia e falou para alguns amigos e colegas mais próximos. Ligou para a namorada e pediu para ela largar tudo o que estava fazendo. Foram para casa e ele, depois de algum tempo fazendo suspense, contou a novidade. Comemoraram bastante, fizeram planos e gastaram alguns milhões mentalmente.
Passado algum tempo, a namorada quis dar uma conferida nos números, só para se certificar de que todo aquele sonho era realidade. Entrou na internet, olhou os números e realmente viu que eram os mesmos. Conferiu ainda uma vez mais e, de repente, notou alguma coisa estranha:
- Mas Cau, esse aqui não é volante de jogo, é de resultado...
Uma ducha de água fria e a sensação de alguns milhões de reais voando pela janela.
No dia seguinte, de manhãzinha, com a cabeça ainda latejando da ressaca dos sonhos que se desmancharam abruptamente no ar, Cau atende o telefone. Do outro lado da linha, Simanca, com aquele inconfundível sotaque cubano.
- Cau, o número da minha conta no banco é...


(Adendo: hoje, por sinal, é aniversário de Cau Gomez).

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

INVENTÁRIOS 7


Mirasmus




(Continuação – ver os outros posts da série Inventários)

Certa vez, Beth leu num livro que bebês privados de contato podem morrer de um mal denominado “mirasmus”. Eles precisam de cuidado, de carinho, de interação com outro ser para sobreviver.
Para estudar isso, uma experiência foi feita com macaquinhos recém-nascidos, que eram separados das mães. Os cientistas construíram dois tipos de simulacros de mães para os filhotes. O primeiro tipo era feito de arame, tendo uma mamadeira com leite embutida. O segundo era coberto de pele macia e quentinha, mas não tinha mamadeira.
O resultado é que os macaquinhos que ficavam com as “mães” peludas estavam mais felizes e saudáveis do que aqueles que permaneciam com as de arame frio. Depois de algum tempo, os macaquinhos foram, então, encaminhados para suas mães verdadeiras e os primeiros continuaram se desenvolvendo melhor do que os outros, que pareciam mais quietos e assustadiços.
A mãe de Beth, que se chamava Alma, teve depressão pós-parto quando ela nasceu. O tempo passou, a depressão também. Mas Alma continuou distante da filha de quem não escondia que ela era o fruto de uma gravidez indesejada. O tratamento talvez não magoasse tanto a Beth se ela não soubesse que poderia ser diferente, já que via os cuidados que a mãe tinha com o irmão mais velho, Ricardo.
O pai, Sérgio, era distante sempre. Distante da mulher e dos filhos. Passava o tempo todo preocupado com trabalho, dinheiro e com as amantes. Já adulta, Beth viu o filme “O Fabuloso Destino de Amelie Poulain” e se identificou muito com a garota. A única diferença é que nem quando ela ficava doente, seus pais lhe davam atenção. Ela lembrava da mãe a levando ao consultório médico sem trocar uma única palavra e depois a trazia para casa, dava remédio e a punha na cama.
Ela via o irmão chamar a atenção dos pais com suas exibições. Cantava, dançava, fazia palhaçadas, tirava notas excelentes, era bom esportista e muito obediente. Não sobrava muito espaço para Beth pedir atenção para ela.
Quando tinha uns seis anos, ela descobriu uma coisa que, bem ou mal, lhe abriu novas portas para o mundo. Foi quando quebrou um grande vaso de porcelana e a mãe lhe deu uma surra. Foi a primeira vez e doeu bastante. Mas aquela súbita atenção inesperada, aquela sensação de estar viva, de ser vista, de chamar a atenção do mundo, lhe trouxe um tipo de satisfação inédita.
Dias depois, testou o mesmo com seu pai, quebrando uma pequena estatueta que ficava na mesa do escritório dele em casa. Bingo! Funcionava. A partir daí, Beth passou a achar que ser agredida era um tipo de atenção, uma demonstração de preocupação, uma inequívoca manifestação de reconhecimento da importância da sua existência.

Ricardo
O primeiro namorado de verdade de Beth se chamava Ricardo, o mesmo nome de seu irmão. Ela tinha 14 anos e se apaixonou por ele por tudo aquilo que as garotas dessa idade procuram num menino: ele era popular, bonito, adorado pelas outras meninas e a tratava com certa indiferença.
Ricardo era dois anos mais velho e não tinha a mesma devoção que Beth tinha por ele. Certa vez, ele a deixou sozinha no cinema e foi embora com dois amigos, sem ao menos lhe avisar. Na escola, a deixava falando sozinha e chegou algumas vezes a ficar com outras garotas na frente de Beth.
Mas ela não ligava e ficava ainda mais apaixonada. Corria atrás dele, choramingava, implorava. Ele a mandava embora, debochava, chamava de burra e outras coisas piores. E ela lá, beijando os pés dele.
Certa vez, Ricardo, irritado porque outra garota havia lhe deixado esperando, deu um tapa no rosto de Beth. Ela chorou, mas acabou voltando a procurá-lo. A cena se repetiu várias vezes até que ele enjoou da brincadeira e a mandou embora “pra sempre” – como ele fez questão de deixar claro.
Beth chorou muito, mas depois de um tempo veio outro namorado. E outro, e mais outro. E todos a tratavam com desprezo e violência, numa repetição doentia do que ela vivia em casa. Foi só na época de faculdade que os olhos de Beth se abriram para esse ciclo de auto-flagelação. Ela conseguiu romper isso e mudar suas escolhas.
Não que ela tivesse encontrado então algo muito diferente do que tinha visto antes. Mas estava menos dependente de alguém em sua vida. Sua auto-estima crescente com o curso de psicologia e um círculo bacana de amigos fizeram-na esquecer por um bom tempo a procura pela tal alma gêmea que a tornaria tão feliz.
Ela acreditava que ainda não sabia o que era o amor. Mas já sabia que aquilo que ela experimentara até ali não era. - Talvez isso não exista mesmo – pensava. E levava sua vida assim.
Aprendeu na faculdade de psicologia que tudo o que os pais dizem – ou não dizem – fica gravado muito fundo nas crianças. Mas, já adultas, elas têm o poder de mudar isso, sozinhas ou com a ajuda de outras pessoas.
Ficou gravada em sua memória a história de uma colega de curso que era muito gordinha quando criança e todos a achavam linda. Era paparicada, beliscada e mimada o tempo todo pela família. Quando ficou moça, ainda era bem gordinha e todos – de repente – passaram a criticá-la e rejeitá-la.
Inconscientemente, ela não entendia muito bem essa mudança de opinião do mundo. Essa espécie de traição. E, sem conhecer outro caminho para conquistar a estima das outras pessoas, comia ainda mais, tentando encontrar em algum lugar perdido daquele caminho que percorrera, uma resposta para essa pergunta.

(Continua na série de posts Inventários)

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

IMPERTINÊNCIAS 7


Carnavalium

Se eu dissesse que imaginava, estaria mentindo. Impossível imaginar. Por mais que a TV mostre, por mais que a gente leia sobre isso, por mais que os outros contem, é impossível antecipar o que é o Carnaval da Bahia.
Uma semana antes, e eu pensava em passar o Carnaval (peguei plantão sábado e domingo e folga segunda e terça no jornal) descansando, andando na praia e coisa e tal. Longe do verdadeiro caos que algumas pessoas me pintaram. Me disseram que era um verdadeiro inferno de violência e devassidão (sic), de onde, se você entrasse, só conseguiria sair de novo depois da quarta-feira de cinzas (se saísse).
Que nada. A cada dia aparecia alguém me convidando pra ir a algum lugar e acabei indo todos os dias para a folia, sem gastar quase nada. Do Palco do Rock, em Piatã, até o desfile de bonecões, no Pelourinho. Do show dos Miseravão, no Rio Vermelho, até a entrada triunfal de Ivetão, com o sol a pino, no Campo Grande. Do camarote chique (graças à super-Sônia supersônica), onde tinha uísque, rango caro e charuto de graça, até a pipoca apertada e suada do Crocodilo de Daniela Mercury, com muita mulher linda, na Barra.

Energia
É uma explosão de energia, de alegria e de beleza. Mesmo não sendo fã de axé, pulei até cansar atrás dos ídolos da massa, como Banda Eva, Babado Novo e Asa de Águia, e também de deuses sagrados da MPB, como Gilberto Gil e Jorge Benjor. Na mistura de ritmos, teve até Fatboy Slim puxa do a massa. E o que falar do Chiclete. Um fenômeno irracional. Uma coisa muito parecida com a torcida do Bahia. Quase um fanatismo religioso. Contagiante.

Pra quem quiser conferir fotos da folia, aqui vai o link da galeria do A TARDE Online. Um belo trabalho do pessoal do Online e um espetáculo o material feito pelo time de fotógrafos de A TARDE: http://www.atarde.com.br/carnaval/galeria/index.jsf

Lado B
Mas o melhor mesmo do Carnaval na Bahia é o que ele tem de mais popular. É a engraçadíssima e inteligente mudança do Garcia. É a beleza dos blocos afro como o Ilê e o Male. É o tapete dos Filhos de Gandhy. É a fubica de Armandinho fazendo duelo na guitarra baiana com Pepeu. E é o pessoal que trabalha de vendedor, garçom, faxineiro, cordeiro, segurança e catador de latinha largando tudo de lado pra dançar ao som do trio elétrico. É o mais puro e simples prazer. É a felicidade experimentada de forma direta, sensorial e sem restrições.
Uma coisa difícil, inicialmente, de ser entendida por um cara do Sul, cheio de travas, sinequanons e detalhes sobre a felicidade, aprendidos na educação católica e nas propagandas de margarina.

Segregação
O Carnaval tem, sim, muito de segregação. Tem as castas, cordas separatórias, camarotes e abadás. Tem o lado feio da exploração de uma festa pública para o lucro de uns poucos e o desfile dos políticos. Tem o massacre da mídia eletrônica promovendo seus queridinhos e a violência em todas as suas formas que, apesar da beleza da festa, toma seu lugar no preconceito, nas brigas, no crime e na rapinagem.

Iloma e a cobra
Mas o Carnaval também rende boas histórias. Uma das mais engraçadas que ouvi, é de Iloma Sales, colega de jornal A TARDE. Há uns anos atrás, ela, que é uma pessoa muito doce, inteligente e adora uma festa, saiu fantasiada de cobra no Carnaval. Deixou o carro estacionado numa das ruas laterais da Barra e lá se foi pra folia.
Já de manhã, cansada da farra, foi procurar o carro. Qual nada. Tinha sido rebocado pela SET.
Lá foi ela, então, vestida de cobra, suada, despenteada e com os pés enlameados, reclamar o carro na SET. Os funcionários não queriam liberar e Iloma teve que ligar pro jornal pedindo uma intervenção junto à SET, pra ver se davam um “jeitinho”. Por fim, de má vontade, os funcionários tiveram que liberar o carro para aquela “sucuri descabelada”, que pôde, então, finalmente, encerrar a noite de folia. Depois de um pequeno “carteiraço”. Ossos do ofídio, digo, do ofício. (trocadilho horrível)

Mas agora chega de escrever, porque hoje é a última noite de Carnaval e ainda tem uma reservazinha de energia pra gastar. Acho que a partir da quarta-feira de cinzas (amanhã), eu não vou querer ouvir axé por um ano.

sábado, 2 de fevereiro de 2008

IMPERMANÊNCIAS 7


Silêncio

Silêncio
Doce silêncio
Sem peso
Só o sopro
Do todo tênue
Teu corpo

Incêndio
Lento e calmo
Preguiçoso
Promissor
E dócil incêndio
Da alma

Desejo
Manso desejo
Adormece
Música clara
Qual sonho
Todo meu Ser

Silêncio...

Wilson Gasino

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

INVENTÁRIOS 6


This time will pass


(Continuação – ver os outros posts da série Inventários)




Ismael Devanir ismaeldeva@gmail.com for bethfuoco@gmail.com subject: Até onde


Beth, minha querida Beth,

Hoje faz cinco anos, 11 meses de 18 dias que estamos juntos.
Olho pra trás e vejo que chegamos tão longe, que fomos tão alto e vivemos tantas coisas nesse tempo, como, talvez, nunca tínhamos imaginado.
Então, eu penso, como ficamos assim?
Como ficamos tão próximos que não olhamos mais um para o outro como se fosse outra pessoa?
Lembro da noite em que te conheci.
Como rimos, como falamos durante horas sem parar e sem sentir o tempo passar.
E as coisas aconteceram com tanta rapidez e tanta facilidade, como se fosse assim mesmo que tivesse que acontecer, e não de outra forma.
Ninguém nos disse nada. Ninguém nos guiou nessa estrada.
E chegamos até aqui.
Mas ninguém também nos avisou que a gente poderia se perder assim.
Ninguém nos ensinou como fazer melhor as coisas.

Antes de te conhecer, as pessoas me diziam que o amor deveria ser um porto seguro. Um lugar pra se abrigar das tormentas do oceano, um lugar de repouso e paz.
Mas eu achava isso muito pouco.
E eu descobri com você que o amor pode ser um navio pra viajar, pra correr o mundo, vendo tudo, conhecendo, explorando, desvendando, descobrindo, aprendendo, crescendo...
E nós crescemos tanto, meu amor.
Com você, descobri continentes no próprio mundo, desvendei mistérios dentro de mim mesmo, ultrapassei os limites da minha vida até então restrita.

Acordei hoje lembrando daquela vez em que nos perdemos na Chapada e ficou tarde e escuro e não sabíamos mais como voltar até onde tínhamos deixado o carro.
Primeiro você ficou apavorada, e eu estava calmo.
Depois, você se acalmou e eu fiquei preocupado até não poder mais. Me sentia responsável por você. Tinha medo e não sabia como proteger você.
Aí você me abraçou e disse que tudo ia ficar bem.
Tinha uma lua brilhante no céu. Crescente, acho eu. E andamos durante horas, indo e voltando ao mesmo lugar.

Resolvemos, então, parar e dormir um pouco perto de umas pedras grandes.
Eu estava em pânico, com vontade de chorar.
E você começou a cantar uma música pra me acalmar.
Você lembra? Era Stuck in a Moment, do U2.

"You've got to get yourself together
You've got stuck in a moment and now you can't get out of it
Don't say that later will be better now you're stuck in a moment
And you can't get out of it"

E você me abraçou e me beijou lenta e carinhosamente.

"I will not forsake, the colours that you bring
But the nights you filled with fireworks
They left you with nothing
I am still enchanted by the light you brought to me
I still listen through your ears, and through your eyes I can see"

E me contou das noites que passou sozinha e no escuro, pedindo à vida que te trouxese alguém como eu, que te ajudasse a enxergar o teu próprio caminho.

"And you are such a fool
To worry like you do
I know it's tough, and you can never get enough
Of what you don't really need now... my oh my"

E me contou das vezes em que chorou sem mesmo saber porque, sentindo que tudo no mundo era tão distante a ponto de ser intocável.

"You've got to get yourself together
You've got stuck in a moment and now you can't get out of it
Oh love look at you now
You've got yourself stuck in a moment and now you can't get out of it"

Me falou do quanto queria se sentir livre como naquele momento. Livre pra se perder e livre pra se encontrar quando quisesse.

"I was unconscious, half asleep
The water is warm till you discover how deep...
I wasn't jumping... for me it was a fall
It's a long way down to nothing at all"

Tua mão nos meus cabelos me fazia sentir como uma criança e eu descobri que poderia ser homem, ser forte e ser frágil ao mesmo tempo, com você.

"You've got to get yourself together
You've got stuck in a moment and now you can't get out of it
Don't say that later will be better now
You're stuck in a moment and you can't get out of it"

E você me disse que poder cuidar de mim te fazia se sentir mais forte a ponto de esquecer o próprio medo. E eu descobri o quanto você era generosa e doce e você parecia enorme naquele momento pra mim.

"And if the night runs over
And if the day won't last
And if our way should falter
Along the stony pass"

E eu, sem a mínima razão, comecei a chorar e rir ao mesmo tempo. Senti um vazio embaixo de mim como se eu estivesse me lançando de um avião debaixo de mim. E o mundo inteiro se abria pra mim. Eu não tinha amarras, não tinha onde me segurar, não tinha como controlar a situação. E eu não queria mais esse controle. Só queria me soltar nos teus braços e deixar que a vida nos levasse onde quer que fosse. Pela primeira vez, desde que eu era um bebezinho, eu me entreguei assim. Pela primeira vez eu não me preocupava com nada mais que pudesse acontecer. Só queria deixar que a tua respiração me ditasse o ritmo em que o meu coração devia bater. E nós fizemos amor ali mesmo, de uma forma diferente de todas que fizéramos antes.

"And if the night runs over
And if the day won't last
And if your way should falter
Along the stony pass
It's just a moment
This time will pass"

No dia seguinte, acordamos com o sol e acabamos encontrando o carro.
E o tempo passou. E agora, eu já não sei como deixar essas e outras tantas lembranças pra trás.
Não quero que a gente continue se magoando do jeito que está, mas quero tentar de novo encontrar esse sentimento puro que tivemos.
Quero uma chance pra nós.
Quero me perder de novo com você.
É isso.
Não me deixe aqui sozinho esperando.
Do sempre seu,

Ismael

"It's just a moment
This time will pass"

Responder Encaminhar

(Continua – ver os outros posts da série Inventários)