sábado, 29 de novembro de 2008
IMPERMANÊNCIAS 55
The road not taken
(Robert Frost)
Two roads diverged in a yellow wood,
And sorry I could not travel both
And be one traveler, long I stood
And looked down one as far as I could
To where it bent in the undergrowth.
Then took the other, as just as fair,
And having perhaps the better claim,
Because it was grassy and wanted wear;
Though as for that the passing there
Had worn them really about the same.
And both that morning equally lay
In leaves no step had trodden black.
Oh, I kept the first for another day!
Yet knowing how way leads on to way,
I doubted if I should ever come back.
I shall be telling this with a sigh
Somewhere ages and ages hence:
Two roads diverged in a wood, and I--
I took the one less traveled by,
And that has made all the difference.
quinta-feira, 27 de novembro de 2008
INCONSCIÊNCIAS 21
Bips
(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
Som de rufar de tambores. Metal raspando quando sai da bainha. Depois o zunido no ar. E o barulho seco do aço cravando-se na receptiva madeira.
Lúcia sente a faca entrar na tábua a alguns milímetros da pele do pescoço. Ela ouve um bip distante.
Os pelos da nuca se arrepiam e ela sente uma emoção diferente. Excitante como uma carícia. Como um lábio roçando docemente em seu pescoço nu.
Outra lâmina. Ela se crava ao lado da batata da perna esquerda. Muito perto. Arrepio em todo o corpo.
A mão firme de Dorival solta o aço no ar. Um fio invisível a conduz carinhosamente até ao lado da coxa direita de Lúcia. Bip.
Lúcia sua. Seu corpo passa a esperar languidamente cada um dos punhais que chegam pelo ar. Carinhos delicados.
Há um prazer indescritível em cada vez que a faca entra na madeira a poucos milímetros da sua pele.
Ondas de calor percorrem seu corpo. Bip. Arrepios de cima a abaixo na espinha. Respiração rápida.
Ela sente o punhal entrar na madeira entre o braço e a pele do seio direito. Uma área muito sensível.
Lúcia sente prazer como nunca na vida. A boca fica cheia de saliva e a vagina está quente e molhada. Seus quadris começam a tremer. Bip.
O momento mais grave. Dorival coloca a venda para a última faca. Lúcia sabe que ele ainda enxerga através do pano. Ela nem pensa. O público suspende a respiração.
A faca voa, pássaro selvagem domesticado pelos dedos seguros de Dorival. O aço vibra e canta. O pássaro pousa. A madeira denuncia o golpe.
O metal penetra a uma distância mínima do corpo de Lúcia, bem no meio das pernas. Lúcia estremece com o frenesi do gozo. Ela geme e suspira.
O auditório vai abaixo. Ovação. Aplausos. Gritos. Risos. Bip. Bip. Bip. As luzes giram. Ela vê um clarão.
Lúcia vê o sorriso de Dorival vindo em sua direção. Bip, bip, bip, bip. O clarão aumenta. Ela já não sente o corpo. Bip, bip, bip, bip, bip. O clarão é tanto que não há mais como ficar com os olhos abertos.
Bip, bip, bip, bip, bip, bip, bip, bip, bip, bip. Ela ainda ouve a voz de Dorival dizendo: - Eu amo você. Bip.
Biiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiip...
Os médicos retiram o aparelho de ressuscitação. O coração já não responde mais. Eles lamentam pela perda da mulher jovem que foi covardemente esfaqueada pelo marido.
Na parede, em frente à cama de Lúcia, uma gravura antiga de circo mostra palhaços, bailarinas, malabaristas e outros artistas. No centro da figura, uma jovem de olhos azuis sorri. Bip.
Fim (bip)
quarta-feira, 26 de novembro de 2008
INCONSCIÊNCIAS 20
Luzes
(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
Cheiro de palha molhada. Cocô de cavalo. Suor. Pipoca. Roupa mofada. Algodão doce.
Lúcia assiste, um a um, todos os números do circo que antecedem o do atirador de facas.
Angústia. Malha apertada. Respiração curta. Coração acelerado. Vontade de fugir. Excitação.
Ela sente uma mistura de emoções que vão da alegria histérica ao início de um pânico profundo.
Palhaços. Risos. Contorcionistas. Aplausos. Bailarinas. Suspiros. Malabaristas. Apupos.
O anão Golia, com voz poderosa, anuncia o aterrorizante número de Dorival, O Atirador de Facas.
Lúcia ouve um bip distante e sente que chegou a hora de resolver tudo de uma vez por todas.
- É agora – pensa, seguindo Dorival ao picadeiro – o momento que eu mais temi e mais quis
(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
terça-feira, 25 de novembro de 2008
INTERMEZZO 8
The build up
(Kings of Convenience)
The build up
lasted for days
lasted for weeks,
lasted too long
our hero withdrew,
when there was two
he could not choose one,
so there was none
worn into the vaguely announced
the spinning top made a sound like a train across the valley
fading, oh so quiet but constant 'til it passed
over the ridge into the distances
written on your ticket to remind you where to stop
and when to get off
segunda-feira, 24 de novembro de 2008
INCONSCIÊNCIAS 19
Ruas
(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
- Então é assim? – perguntou Dorival.
Lúcia virou-se. Já estava parada ali há algum tempo. Olhava a rua. Fitava o que havia do outro lado.
Juntara suas poucas coisas. Uma pequena sacola. Roupas que ganhara de Diana. Sonhos. Lembranças.
Saíra do trailer. Meio da noite. Silêncio. Frio. Um mundo fechado. Angústia. Não o alívio que pensara.
- Você vai embora assim? Sem se despedir?
Os olhos azuis de Lúcia se apagam. Ela se sente sem forças para atravessar a rua. Mas não consegue ficar.
- Desculpe. Eu não sabia o que dizer - ela ouve um bip distante.
- Mas por que ir embora?
- Eu não consigo... – ela passa a mão pelo ventre.
- Acha que só você tem feridas?
(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
domingo, 23 de novembro de 2008
INCONSCIÊNCIAS 18
Águas
(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
Atrás da lona. Lúcia olha. Dorival atira facas. Celeste, a assistente, recebe os golpes à sua volta. Impassível.
As facas voam. Precisas. Desenham o contorno da moça. Cravam-se na taboa. Recortam o mundo à volta dela.
Lúcia treme. Primeiro, o barulho do metal deixando a bainha. Então, zunido no ar. Por fim, som seco na madeira.
Dorival nunca treme. Mão firme como aço de sabre. Olhar direto ao ponto. Nenhum desvio. Nenhuma dúvida.
Celeste confia nele. É sua irmã. Os dois fazem o número desde crianças. Nunca houve um erro. Até ali.
Dispersa. Ela tenta se concentrar. Pensa em Hélio. Marido doente. O cigarro comeu o pulmão. Disse o médico.
Ela faz o que não devia. Distrai-se. Move o corpo para a direita. Alguns centímetros. E a faca penetra o ombro.
Gritos. A luz se apaga por segundos. Acende de novo. Música. Palhaços. Bailarinas. Malabaristas. Cavalos.
Atrás da lona. Lúcia chora. Não presta atenção ao barulho de bip. Teimoso. As lágrimas não são por Celeste.
(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
sábado, 22 de novembro de 2008
INCONSCIÊNCIAS 17
Pés
(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
Lúcia pensa. A Velha Aurora lhe deixara confusa. Final de tarde. Pôr-do-sol. Circo movimentado. Artistas se preparam para o espetáculo.
Os três palhaços passam. Sapatos enormes. Engraçados. Lúcia pensa.
- Gosta dos meus sapatos? – pergunta Primeiro.
- Gosta, gosta, gosta? – insiste Segundo.
- Hummhummm!! – afirma Terceiro.
- Só queria saber qual o tamanho dos pés... – diz Lúcia.
- Como assim? - indaga Primeiro, fazendo uma careta esquisita, no que é imediatamente imitado pelos outros dois.
- Ora – tenta explicar Lúcia – só queria saber o quanto sobra da parte do sapato que já não é mais pé.
- Mas tudo aqui é pé – responde Primeiro – desde que somos palhaços.
- É sim, minha querida, é sim – confirma Segundo.
- Hummhummmmmhuhuhummmmmhuhuhuhuhummmmmmmmm – acrescenta Terceiro, que recebe um olhar de reprovação dos outros dois por ser tão óbvio.
- Mas, mas, mas – gagueja Lúcia – se vocês tivessem que cortar a parte do sapato que não é pé, que não é parte de vocês, como vocês fariam para saber?
- Não há como saber. Já é parte do que somos. Se cortarmos, não vamos mais ser nós mesmos – pontua, pausadamente, Primeiro.
- Seremos outras pessoas – prossegue Segundo.
- Hummhum – aponta Terceiro, desta vez mais comedido.
- Mas, mas... – tateia Lúcia pelas palavras.
- Eu serei o presidente Kubitscheck-check-check – caçoa Primeiro.
- E eu, Severina Xique-xique-xique – emenda Segundo.
- Hum – começa Terceiro, mas é interrompido pelos outros dois em uníssono.
- Pssssssssssittttttttt, mas que disparate. Estamos a falar de coisas sérias – berram os palhaços.
Lúcia pensa. Ainda mais confusa. Não ouve direito a discussão dos palhaços. Escuta ao longe, mais uma vez, um som parecido com um bip.
(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
sexta-feira, 21 de novembro de 2008
INCONSCIÊNCIAS 16
Ventos
(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
Tarô de Crowley. Velha Aurora pede a Lúcia. Ela tira uma carta. Baralho velho e viscoso. Luz de velas.
A carta tem o número 10. Lâminas entrelaçadas.
- Dez de espadas – exclama Lúcia.
- Ruína – diz a voz rouca da Velha. Olhos vazios. As sobrancelhas gritam.
- Ruína? – pergunta Lúcia. Ela ouve um barulho. Espécie de “bip”. Longe.
- A carta é o rei da ruína. Desesperança, perda, dor.
- Mas...
- Naipe de espadas é elemento ar, pensamento, razão, consciência. Respiro e sopro. Nascimento e morte. A décima casa é o fim de uma viagem.
- Não tem saída para mim, então?
- Essa é a saída. Tudo vai ruindo. E cai também a prisão que você construiu para se guardar. Cercada de espadas. Idéias afiadas que cortam você. Não lute contra elas. Isso só machuca.
- Como?
- Deixe o medo vir – riu a bruxa estridente.
- Mas eu não dou conta.
- Eeeechhhhh – gritou a Velha Aurora – use a espada.
(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
quinta-feira, 20 de novembro de 2008
INCONSCIÊNCIAS 15
Números
(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
Lúcia dormiu e sonhou enquanto todas as luzes do circo pareciam acesas lá fora e todas as possibilidades de contato impossíveis para ela e para o mundo inteiro e nada nada nada nada nada nada poderia ser feito ou dito ou pensado ou tentado ou ignorado ou omitido ou achado ou perdido que pudesse aliviar aquele sentimento de derrota e de falência e de perda e de incapacidade e de insatisfação e de insuficiência e de falta e de ausência e de total fraqueza diante do desafio que era vencer seus próprios medos e encarar de frente todos os riscos que a vida lhe propunha no que dizia respeito à paixão e ao desejo e ao amor sendo que isso ganhava tanto mais força quanto maior era essa paixão e esse desejo e esse amor e ela sentia que o tempo passava e as dores em seu ventre se acendiam em brasa quanto mais próxima ela estava de Dorival e aquilo a devorava por dentro e iniciava um processo interno de discussão contínuo dela consigo mesma onde cada lado defendia um ponto de vista e ela sofria com essa briga que a ia partindo em duas como se outra faca a cortasse devagar e dolorosamente e a fizesse lembrar mais uma vez do que lhe tinha acontecido antes de se juntar ao circo e a fazia maldizer cada momento ruim que havia passado na época e a fazia rogar ao universo que levasse embora aquelas memórias e também a fazia perguntar-se porque ela e porque aquilo e porque tanto e se isso nunca mais acabaria e se ela viveria assim até o fim de sua vida limpando o chão do picadeiro do circo e ouvindo aplausos e risadas e sem saber o que seria subir no palco e executar aquele que seria o seu próprio número dentro do grande espetáculo...
(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
quarta-feira, 19 de novembro de 2008
INTERMEZZO 7
Casca de Noz
Visitei o site da Armazém Companhia de Teatro. Companhia cujo trabalho eu acompanho e gosto muito. Fiquei bem feliz de ver que uma crítica que eu escrevi em 2004 no Jornal de Londrina foi escolhida para figurar no site. Está lá. Ao lado de críticas de O Globo, JB e Tribuna da Imprensa. O pequeno e fantástico Jornal de Londrina. (Saudade).
Ah, a crítica de O Globo é de Bárbara Heliodora. Olha só.
A peça é Casca de Noz, que empresta o título de Shakespeare (Hamlet), inspiração de Italo Calvino (Cosmicômicas) e tem um incrível texto de Maurício Arruda Mendonça. Uma peça que realmente eu gostei muito de ver. Daquelas que ficam na memória para sempre.
INCONSCIÊNCIAS 14
Contornos
(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
Lúcia bate na porta. Ansiedade. É a primeira vez no trailer de Dorival. Um jantar. Disse ele. Olha lá. Disse ela.
Dorival abre a porta. Lúcia suspira e sobe. A escada é curta. Três degraus. Não há mais tempo para pensar. Pensa ela.
Ele sorri. Ela fica feliz. Um abraço forte. Tranqüilo. Um beijo longo. Doce. Como isso é bom. Suspira ela.
Então ele começa. Orgulhoso. Mostra a coleção. Na mesa. Nas paredes. Nas caixas. Em todo lugar. Sorri ele.
Adagas. Espadas. Cimitarras. Katanas. Punhais. Tesouras. Navalhas. Canivetes. Facas. Facões. Facalhões. Facalhazes.
Numa caixa, a frase: “não me uses sem motivo, não me guardes sem honra”.
Lúcia fica tonta. Tenta resistir. O estômago embrulha. Falta de ar. Imagens terríveis retornam. Pavor. Desiste ela.
Dorival olha. Pede que ela volte. Não entende. Ela corre. A porta bate. O silêncio fica. Não posso. Grita ela.
(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
terça-feira, 18 de novembro de 2008
INCONSCIÊNCIAS 13
Fogueiras
(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
Noite de São João. Depois do espetáculo. O circo dança. É festa.
Os músicos tocam. Helvécio, rapaz tatuado que ergue lonas, canta. Voz suave. Vicente Celestino.
Dançam as bailarinas gêmeas Luna e Stela. Dançam os três palhaços Primeiro, Segundo e Terceiro. Diana, a mulher barbada, dança com Santelmo, o equilibrista. O Grande Abelardo dança com sua nova assistente Olívia. O domador de leões Rigoberto dança com o chimpanzé Lolô. E todos dançam com Lúcia. Que dança. Só.
Dorival, o atirador de facas, procura Lúcia com os olhos. Ela tenta dançar com eles para longe. Seus pés lhe traem. Os olhos se encontram. E falam. E dançam juntos.
Atrás da barraca de tiro ao alvo. Beijo. Música de realejo. Fogos de artifício. Macio. Molhado. Quente. Doce.
Tão perto. Encaixe perfeito. Lúcia não quer que acabe nunca mais. É tarde.
Tarde?
(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
domingo, 16 de novembro de 2008
INCONSCIÊNCIAS 12
Perguntas
(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
Golia, o anão do circo, não gostava de Lúcia. Quando ela desistiu de ser assistente do mágico, ele quis mandá-la embora. Reuniu o grupo e fez a proposta.
Os três palhaços não entendiam:
-Por que? – perguntou Primeiro.
- É, por que? Por que? – insistiu Segundo.
- Hummmmmhummhum? – argüiu Terceiro.
- Porque ela tem a alma inquieta – respondeu Golia, ajeitando a cartola e a gravata borboleta.
- Mas ela tem um coração tão bom e... – começou Luna.
- ...é tão útil ajudando em tudo – completou Stela.
- Mas ela tem essa enorme e inútil cicatriz no olhar – retrucava o anão, enquanto Lúcia abaixava os olhos.
- Ela pode tentar outras coisas no circo – tentou o mágico Grande Abelardo.
- E não podemos abandoná-la assim – ajuntou Diana, a mulher barbada.
- O sorriso dela – elevou o tom, Golia – é uma ferida só.
- Ela fica – disse Dorival, que acabava de chegar, em um tom firme que fez o anão tremer.
- Mas e as razões que eu apresentei? - contestou Golia com a voz baixando.
- Ela fica – sentenciou Dorival – não me interessam as suas razões, só aquilo que nós sentimos. Então ela fica.
(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
sábado, 15 de novembro de 2008
INCONSCIÊNCIAS 11
Réstias
(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
Dorival procurava Lúcia. Ela fugia. Muito trabalho no circo. Ia dia. Vinha dia. A noite anoitecia. E amanhecia. Dia mais dia.
À noite, Lúcia via o número de mágica. O Grande Aberlardo. Gostava muito. Especialmente aquele momento de suspense. Silêncio. Tudo parado. Depois, explosão de palmas.
Na mágica – pensava Lúcia – tudo é possível, tudo é surpresa. E ela pensou em aprender mágica.
A oportunidade surgiu quando a assistente do Grande Abelardo fugiu com um caixeiro viajante. Lúcia se animou. Começou a aprender.
Mas, belo dia, O Grande Abelardo resolveu ensaiar com ela um novo número. Espadas perfurando a caixa com a mulher dentro. Lúcia desistiu.
O Grande Abelardo não entendeu, mas aceitou a perda da assistente. Muita gente queria aquele lugar. Ele ainda disse a Lúcia:
- Para ser mágico, é preciso aceitar todas as possibilidades. Que as coisas não são exatamente o que aparentam. Mas aquilo que a gente quer que seja.
- Se é para ter medo – respondeu Lúcia – quero temer as espadas de verdade, não as falsas.
- Mas não é preciso ter medo de espadas falsas – insistiu o mágico.
- E não há como vencer o medo das lâminas de verdade acariciando as falsas – objetou Lúcia - isso seria apenas enganar a mim mesma.
(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
sexta-feira, 14 de novembro de 2008
Inconsciências 10
Sombras
(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
A Velha Aurora. A pessoa que mais intrigava Lúcia no circo. Cega desde a infância. Não tinha função. Não trabalhava. Ficava lá. Sentada. Sozinha. Em seu trailer.
As pessoas iam chegando. Entravam. Sentavam. Pediam conselhos. A Velha Aurora dava. Era muito certeira. Diziam.
Tinha perdido a visão aos oito anos. Diziam. Um cigano a raptara e furara seus olhos. Fez isso para colocá-la na rua. Para esmolar. Ganhava mais assim. Diziam.
Com a vista perdida, Aurora aprendera a enxergar outras coisas.
Enxergava o que está nos corações. Via o que se passa na alma. Até o que as próprias pessoas não vêem em si mesmas. Diziam.
Lúcia tinha medo da Velha Aurora. Encontrara-se com ela uma vez. As cavidades dos olhos lhe esquadrinhando a alma. Arrepios na espinha. Estômago embrulhado.
- Ééééchhhhh – gritara a Velha Aurora como um grande pássaro que avista a presa.
- A luz – disse a velha com seus olhos de cratera lunar - provoca sombras nas saliências da alma.
(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
quarta-feira, 12 de novembro de 2008
INCONSCIÊNCIAS 9
Riscos
(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
Espetáculo terminado. Os artistas do circo vão se juntando. Conversam. Trocam impressões. Alguns bebem um pouco. Outros, muito.
Lúcia termina a faxina. Ouve as risadas lá fora. Resolve ir ao trailer se deitar. Não quer conversar com ninguém esta noite.
-Nova por aqui?
Ela se vira e vê Dorival, parado ao lado do picadeiro.
- Sou sim – responde.
- Meu nome é Dorival.
- Lúcia.
- Gosta daqui?
- Gosto. Muito.
- Estou no circo há muitos anos. Eu atiro facas. Gosto do que eu faço. Acho que nunca vi ninguém fazer tão bem.
- Que bom – comenta Lúcia. Sensação ruim na barriga.
- Quer ver uma coisa? – pergunta Dorival.
- Sim – ela responde sem vontade.
Dorival lhe mostra uma bainha de couro escuro decorada com metal onde descansa um grande punhal.
- É de aço temperado – ressalta Dorival – de Toledo. Uma das melhores lâminas do mundo.
Ele desembainha a faca. A lâmina brilha. Lúcia estremece. Desvia o olhar.
- Não é bonita? – ele insiste.
- É sim. Mas eu tenho que ir agora. Boa noite.
Dorival segura o braço de Lúcia. Ela sua frio.
- Tenho simpatia por você – ele revela.
- Pois eu não – ela corta – e passe bem.
(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
terça-feira, 11 de novembro de 2008
INCONSCIÊNCIAS 8
Flores
(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
A lona principal do circo era amarela com listas brancas. Amarela também era a roupa dos palhaços. Estrelas azuis. E verdes. E punhos de renda.
O nariz era uma bola vermelha. E também a boca pintada. Bem grande. Em volta uma enorme mancha branca. Para dar a impressão de um sorriso contínuo.
Lúcia triste. Parada num canto. Tinha acabado de conhecer Dorival. Que a deixara encantada. Para logo descobrir que ele era o atirador de facas do circo. Tinha pavor de facas.
Os três palhaços se aproximaram. Tinham acabado sua apresentação.
Eles se chamam Primeiro, Segundo e Terceiro. Primeiro é o mais falante e esperto e tem as tiradas engraçadas. Segundo é sensível e delicado e sempre acaba levando a pior nas brincadeiras. Terceiro tem uma fala incompreensível, parece um bebê gigante e é adorado pelo público, principalmente as crianças.
- Você está triste? – pergunta Primeiro a Lúcia.
- Ela está. Ela está – observa Segundo, compassivo.
- Hummhummmm – resmunga Terceiro.
- Trouxemos flores – diz Primeiro, tirando um ramalhete de plástico, todo desfolhado, do bolso.
- Flores. Flores – bate palmas Segundo.
- Humhumhummmmm – emenda, feliz, Terceiro.
- Obrigado – sorri, Lúcia, confusa – eu queria tanto ser mais alegre...
- E eu queria ser um transatlântico – revela Primeiro.
- E eu, um elefante cor-de-rosa – conta Segundo, revirando os olhinhos.
- Huuuummmmmhumm – prossegue Terceiro, com ar sonhador.
- Nããããããoooooo – respondem, de sopetão, os outros dois juntos - isso é totalmente, ridiculamente, absurdamente e definitivamente impossível.
(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
segunda-feira, 10 de novembro de 2008
INCONSCIÊNCIAS 7
Encontros
(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
Noite de espetáculo, Lúcia observa por entre as frestas da lona.
Vê o show dos palhaços, com suas cambalhotas, arrancando gritos e risadas. Vê o equilibrista na corda bamba deixar a platéia
O número predileto de Lúcia é o de mágica. O Grande Abelardo faz coisas que deixam o público de boca aberta. Faz a ajudante de palco desaparecer, tira um coelho da cartola, puxa uma revoada de pombos de um lenço.
Lúcia é feliz e chora. Bate palmas. Ri e se emociona. É o mundo com o qual sempre sonhou quando era criança.
Repentinamente, um moço de terno branco com lapela azul se aproxima. Passa por ela, cumprimenta com gentileza, sorri e segue para a entrada do palco. Tem a pele morena e o olhar gateado. O cabelo é engomado e o bigodinho lembra Clark Gable, que Lúcia viu um dia, num filme, na matinê.
Ela fica encantada e pergunta a Diana, a mulher barbada, quem é aquele moço.
- Gostou dele, né? – perguntou Diana.
- Gostei sim. Demais. Quem é?
- O nome dele é Dorival. É o atirador de facas.
(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
domingo, 9 de novembro de 2008
INCONSCIÊNCIAS 6
Sonoridades
sexta-feira, 7 de novembro de 2008
INCONSCIÊNCIAS 5
Espelhos
(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
As duas bailarinas com quem Lúcia morava no trailer se chamavam Luna e Stela. Elas eram irmãs gêmeas e trabalhavam no circo desde crianças.
Logo, Lúcia identificou nelas uma estranha complementaridade. Quando uma estava triste, a outra ficava alegre. Quando uma era rude, a outra, doce. Uma falante, a outra calada. Uma profunda, a outra fútil. Uma infinita, a outra singular.
As duas viviam o tempo todo juntas nessa estranha sintonia. Uma era o espelho da outra, oferecendo-lhe sempre a própria imagem invertida.
A simbiose era tamanha, que Lúcia tinha a impressão de que quando uma inspirava o ar era a outra quem expirava. E as duas se revezavam em todos os ritmos da vida. Sístole e diástole, distensão e contração, quente e frio, desejo e repulsa, dor e prazer, fome e fastio.
Com elas, Lúcia aprendeu sobre os dois lados de tudo. Que não é só o punhal que se move em direção ao ventre. O ventre também busca o punhal.
(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
quinta-feira, 6 de novembro de 2008
INCONSCIÊNCIAS 4
Picadeiros
(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
Um emprego no circo. Lúcia estava feliz. Limpava o picadeiro após os shows. Restos de pipoca. Cocô de cavalo. Algodão doce pisado. Papel de bala colorido.
Guardava as lâminas de prata das embalagens vazias de chocolate. Recolhia restos de riso, aplauso e respiração suspensa. Eram seus tesouros no silêncio da grande lona.
Morava num trailer com duas bailarinas gêmeas e a mulher barbada. Boa companhia. Pediram ao dono do circo que aceitasse Lúcia quando ela foi encontrada dormindo sob a arquibancada.
Amigas como não tinha há muito tempo. Mesmo assim, não contava do que acontecera antes. Calava sobre a cicatriz, sobre as dores no ventre, sobre Romildo.
Dizia que seu nome era Renata. Artista que vira quando criança. Graciosa na corda bamba.
Lúcia tinha morrido. Tinha ido embora. Na ponta de uma faca.
(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
quarta-feira, 5 de novembro de 2008
INCONSCIÊNCIAS 3
Cortes
(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
- Quem é você? - Perguntou uma voz distante e rude dentro da cabeça de Lúcia.
- Quem é você? - Insistiu a voz, menos distante e mais rude.
Lúcia abriu os olhos e viu o anão de casaca e cartola parado ao seu lado. Era engraçado e simpático, mas fazia cara de poucos amigos. E continuava a perguntar:
- Quem é você?
Lúcia olhou o anão. Édipo olhando a esfinge. Pensou em responder tantas coisas.
Acabou saindo a única coisa que parecia fazer sentido naquele momento. Escapou de sua boca como um gemido:
- Eu sou aquela que foi ferida.
(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
domingo, 2 de novembro de 2008
INCONSCIÊNCIAS 2
Cicatrizes
(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
O cheiro do hospital é ruim. Há barulho, gritos, choro e ranger de dentes. Lúcia sente o próprio fedor. Carne morta. Remédios fortes. Mijo e cocô no lençol. Dias de dor e febre. Sono intermitente.
Ela finalmente acorda. Deixa o hospital. A barriga dói, mas ela nem vai para casa. Sabe que Romildo pode estar à espreita. O medo é maior do que tudo. Medo dele. E, ainda mais, medo das facas.
Ela anda o dia inteiro sem parar. Nos arredores da cidade, já anoitecendo, as luzes de um circo. Um sonho de infância com cheiro de serragem.
Ela vê, por debaixo da lona, o final do espetáculo. Brilho e alegria. Palhaços dançam.
Sob a arquibancada, ela dorme. O sonho de infância a acolhe e embala.
(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)