quinta-feira, 30 de outubro de 2008

INCONSCIÊNCIAS 1


Lâminas



(Início da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)


O braço em movimento de pêndulo gira como um compasso e a lâmina penetra a carne mole e desprotegida da barriga. Uma, duas, três, quatro estocadas. A mão entra e sai, num exercício repetitivo de quase volúpia.


Lúcia suspira. Já não dói. O corpo cai. Romildo deixa a faca no chão, olha horrorizado e sai pela porta. A vista apaga.


(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

IMPERTINÊNCIAS 54


COM UMA FLOR




E porque eu me levanto para recolher você no meu abraço, e o mato à nossa volta se faz murmuroso e se enche de vaga-lumes enquanto a noite desce com seus segredos, suas mortes, seus espantos - eu sei, ah, eu sei que o meu amor por você é feito de todos os amores que eu já tive, e você é a filha dileta de todas as mulheres que eu amei; e que todas as mulheres que eu amei, como tristes estátuas ao longo da aléia de um jardim noturno, foram passando você de mão em mão até mim, cuspindo no seu rosto e enfrentando a sua fronte de grinaldas; foram passando você até mim entre cantos, súplicas e vociferações - porque você é linda, porque você é meiga e sobretudo porque você é uma menina com uma flor.

(Vinicius de Moraes - trecho de "Para Uma Menina Com Uma Flor")

terça-feira, 28 de outubro de 2008

IMPERMANÊNCIAS 54



Partir, Andar




Partir, andar, eis que chega
É essa velha hora tão sonhada
Nas noites de velas acesas
No clarear da madrugada

Só uma estrela anunciando o fim
Sobre o mar, sobre a calçada
E nada mais te prende aqui
Dinheiro, grades ou palavras

Partir, andar, eis que chega
Não há como deter a alvorada
Pra dizer, um bilhete sobre a mesa
Pra se mandar, o pé na estrada

Tantas mentiras e no fim
Faltava só uma palavra
Faltava quase sempre um sim
Agora já não falta nada

Eu não quis
Te fazer infeliz
Não quis
Por tanto não querer
Talvez fiz

(Herbert Vianna)

domingo, 26 de outubro de 2008

INCONVENIÊNCIAS 1


Casulos




Os dias após o baile vinham sendo de sonho para Mirka. Ela quase não dormira de excitação na noite em que dançara com o Conde. Falara tanto sobre o assunto na volta para casa, que o pai e a irmã mal tiveram tempo de abrir a boca.

Sozinha, em seu quarto, os dias seguintes foram de sonho sobre um novo mundo que parecia se abrir diante dela. O mundo inteiro agora parecia estar ao seu alcance. Sentia seu coração bater com mais força e o corpo encher-se de calor quando pensava no Conde, seus braços fortes, sua elegância, seu olhar misterioso, sua voz profunda e sua personalidade dominadora.

Ele era tudo o que ela imaginara antes e muito mais. Cada vez que lembrava dos acontecimentos do baile, Mirka acrescentava uma série de fatos, de características e de qualidades ao Conde, tornando-o cada vez maior em suas lembranças.

Imaginava o quanto as outras moças da região a invejavam. Ficava fantasiando o dia em que o Conde entraria pela porta e pediria sua mão em casamento. E que casamento seria! Um vestido maravilhoso. Uma festa gigantesca, como nunca houvera outra por ali. E depois, eles viajariam pelo mundo e o Conde a apresentaria a todo o tipo de gente importante e ela conheceria lugares maravilhosos.

O pai cortava o assunto quando ela falava sobre o Conde na mesa. Ela sentia que ele não gostava do seu amado. Talvez fosse ciúme, medo de perdê-la, preocupação normal de um pai. Já a irmã, apenas sorria e não falava nada. Talvez Danuta sentisse inveja dela como todas as outras moças.

Perdida em suas fantasias, Mirka mal percebeu a preocupação do pai e da irmã quando Elias morreu. O pai passou a vir mais cedo para casa. Olhava todas as portas antes de dormir e se certificava que os cachorros estavam soltos no quintal. Danuta rezava muito, não tirava o olho da irmã durante o dia e não a deixava sair sozinha à noite.

Mas Mirka nem notava. Apenas fazia planos, imagina os novos mundos que iria conhecer, os mistérios do universo que iria desvendar quando conhecesse a fundo aquele homem poderoso. Já era hora dela ter aquilo que merecia da vida.

Desde que nascera, tivera sempre a sensação de que havia uma parte da verdade – terrível ou maravilhosa – à qual ela nunca tinha acesso. Uma parte maior da vida, imensa até, e que talvez permanecesse desconhecida pelo resto da sua existência.

Ao mesmo tempo, havia partes da sua própria vida da qual ela sentia que estava sempre fugindo. Havia um lugar na memória que ela evitava como se evita dentro de casa o quarto de alguém que já morreu. Às vezes ela até parava em frente a esse quarto da memória, abria a porta, olhava para dentro, dava uma espiada, mas logo depois fechava e ia embora. E ela realmente nunca entrava lá ou falava com alguém sobre isso.

Pensava nas mentiras que inventava. Não se lembrava mais do momento em que descobrira que a mentira era a maneira mais simples e eficaz de se proteger. Esconder ou falsear o que sentia ou o que queria era a melhor forma de preservar sua intimidade, seu mundo do alcance dos olhos aguçados e críticos dos outros.

Começara mentindo para os outros, criando uma barreira intransponível para o seu mundo interior. Não se lembrava com exatidão, em que momento, também para se proteger, começara a mentir para si mesma. E, desde então, nunca mais parara.


sexta-feira, 24 de outubro de 2008

IMPERTINÊNCIAS 53


QUADRINHA




Mas e o que é, então, o amor?

Senão coisa vária e múltipla

Sem rosto, identidade e fé,

Sem endereço ou sobrenome,

Sem preço, sem cargo e dono,

Tanto cruel quanto sublime,

É acolhimento e abandono.


Há os que amam pouco

E os que muito amam.

Há os que a todos o dizem

E, se enganando, enganam.

Há os que não amam nunca

E sofrem mesmo sem sofrer.

Há os que amam sempre

E já não sabem escolher.


Há os que não têm medo

E aqueles que fogem de tudo.

Há o tipo de amor eloqüente

E aquele que, de repente,

Perde a fala e fica mudo.

E o amor ruidoso de verdade,

Que, cego e também surdo,

Em chama silenciosa arde.


E o que é esse tal amor?

Que é sempre o mesmo

E em tempo nenhum igual.

Predestinado ou a esmo

Pode ser o bem ou o mal,

Pode ser delícia e ser dor,

E a única garantia é a de que

Não há meio termo no amor.


Há os que pensam que amam

E há os que amam e pensam

E estes não sabem amar.

Mas os que amam mais são

Aqueles de coração leve,

Que sentem e nem percebem

Navalha que o peito lhes abre.


Há os que nunca choraram

E os que nunca disseram adeus.

Há os que nunca o perderam

E os que nunca tiveram de seu.

Há os que afirmam não ligar,

Os que juram estar a salvo.

Imaginam ficar escondidos

Mas são flecha, arco e alvo.


E, afinal, o que é o amor?

Chama, luz ou tormento,

Iaiá, ioiô, paraíso e nirvana,

Ou o inverso do esquecimento?

Delícia de reis e mendigos,

È carcereiro ou é libertador?

Quem souber explicar, então,

Que me diga o que é o amor


Wilson Gasino

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

IMPERMANÊNCIAS 53


Um lugar



Então, este é o lugar.

Onde as mãos se encontram

Onde se perdem os olhos

Somando vontades

E multiplicando desejos

De encontro e entrega.


É este, então, o lugar.

Onde os fins são os meios,

E os maiores receios

Crescem como sombras

No crepúsculo, para

Sumir na noite estrelada.


É, então, este o lugar,

Onde bocas distraídas

Se roçam sem pressa

E falam de amor eterno

Sem dizer promessas

Que não caibam num abraço.



Wilson Gasino

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

INTERMEZZO 6


One Art




The art of losing isn't hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn't hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother's watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn't hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn't a disaster.

-Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.

Elizabeth Bishop

domingo, 19 de outubro de 2008

IMPERTINÊNCIAS 52


The Scientist

(Coldplay)


Come up to meet you,
Tell you I'm sorry,
You don't know how lovely you are.

I had to find you,
Tell you I need you,
Tell you I set you apart.

Tell me your secrets,
And ask me your questions,
Oh let's go back to the start.

Runnin' in circles,
Comin' up tails,
Heads on the science apart.

Nobody said it was easy,
It's such a shame for us to part.
Nobody said it was easy,
No one ever said it would be this hard.
Oh take me back to the start.

I was just guessin',
At numbers and figures,
Pullin' the puzzles apart.

Questions of science,
Science and progress,
Do not speak as loud as my heart.

Tell me you love me,
Come back and haunt me,
Oh on I rush to the start.

Runnin' in circles,
Chasin' our tails,
Comin' back as we are.

Nobody said it was easy,
Oh it's such a shame for us to part.
Nobody said it was easy,
No one ever said it would be so hard.
I'm goin' back to the start.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

IMPERMANÊNCIAS 52


Transcrição



As palavras que escrevo

Com cansaço e sonho

Lavam os meus olhos

Dessas tantas visões.


Esse mesmo silêncio

Que assim procuramos

Tem sabor de angústia

Mas também é conforto.


Estamos no escuro,

Mas a luz nos procura,

Estamos sedentos

E a paixão nos afoga

Estamos sem tempo

Mas tempo mesmo não há.

Só o sol,

Só a vida,

Só o momento,

E as palavras que escrevo.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

IMPERTINÊNCIAS 51


Voltas e voltas



O mundo sempre dá voltas. A crise de 1929 ocorreu logo após um período de liberalismo econômico, chamado laissez-faire. A falta de um controle mínimo do Estado sobre os negócios levou à bancarota a economia dos Estados Unidos e da Europa já combalidada pela guerra. Foi o new deal de Franklin Roosevelt, com investimentos maciços do Estado na economia, que conseguiu tirar os EUA da depressão e catapultou o país definitivamente como a grande superpotência mundial.

A onda neoliberal, que varreu o mundo nas décadas de 80 e 90 do final do Século XX, teve grandes defensores da total ausência do Estado como regulador do mercado, citando sempre "a mão invisível" reguladora que a tudo equilibra. Sob esses auspícios, os anos 90 ensejaram as grandes crises do capital volátil, fazendo a fortuna de megaespeculadores como Jorge Soros e
quebrando muitas empresas do setor produtivo e até alguns países.




A história se repete e, para fugir da crise, os países intitulados "desenvolvidos" intervêm pesadamente no mercado, estatizando bancos, tornando públicos os prejuízos privados e tomando medidas fortes sobre a concessão de crédito e o mercado de ações. Numa coincidência irônica, a Europa mostrou mais agilidade e eficiência na tomada de decisões e inverte o eixo do processo de resolução da crise, tirando dos EUA, pelo menos em parte, o papel de "xerife do mundo".

E, por falar em xerife, nenhuma figura ganhou tanta projeção, como pivô dessa crise, quanto George W. Bush. Para muita gente, a impressão é de que trata-se de um coitado, um incompetente. Não se pode esquecer uma coisa: se alguém está perdendo, é porque alguém ganhou. O dinheiro não se evapora, simplesmente se transfere de uma mão para outra. A coisa, nesse caso, funciona mais ou menos como aquelas brincadeiras de pirâmide - com os últimos sempre pagando o pato, enquanto os espertos, que começaram e controlaram a brincadeira, já ganharam muito.

E a "mão invisível", para desgosto de Adam Smith, agora entra nos nossos bolsos para dividir o prejuízo que sobra no final.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

IMPERMANÊNCIAS 51

Mirrors


"And since you know you cannot see yourself,
so well as by reflection, I, your glass,
will modestly discover to yourself,
that of yourself which you yet know not of"

William Shakespeare

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

INTERMEZZO 5


Quasimodo




Tic-Tac, Tic-Tac
Blem-Blom, Blem-Blom.
A polaridade faz o tempo
O contraste faz a música.

Toda impossibilidade
De contato nos
Revela o mistério
Angustiante do outro.

Tic-Tac, Tic-Tac,
Blem-Blom, Blem-Blom.
Linhas paralelas
Sístole e Diástole.

Toda a diferença
é distância e fascínio.
E se faz dor e desejo
E nos faz transcender.

Tic-Tac, Tic-Tac,
Blem-Blom, Blem-Blom.
Tic-Tac, Tic-Tac,
Blem-Blom, Blem-Blom...

domingo, 5 de outubro de 2008

INTERMEZZO 4


O blog anda parado porque estou em viagem. Mas vem bastante novidade logo, logo.