quarta-feira, 30 de julho de 2008

IMPERTINÊNCIAS 44



O Palhaço do Crime


Li há alguns dias atrás uma resenha na Ilustrada da Folha de SP, onde o autor dizia que o filme Batman - O Cavaleiro das Trevas não impressiona adultos "normais". Posso dizer que não achei o filme de Christopher Nolan espetacular e não considero Christian Bale o ator ideal para fazer o Batman (embora seja melhor do que West, Keaton, Kilmer e Clooney). Mas não dá para ver o filme e não se impressionar com a atuação de Heath Ledger como Coringa.

Lendas urbanas e homenagens póstumas à parte, a performance de Ledger impressiona mesmo os mais antigos fãs do Batman dos quadrinhos. Está anos-luz à frente de Jack Nicholson (que fez papel de Jack Nicholson com cara pintada de branco) e de outros famosos intérpretes do Palhaço do Crime na telinha e na telona, mesmo o histórico fanfarrão Cesar Romero da antiga série de TV.

Desde que foi criado por Bob Kane para ser um dos vilões malucos que atormentam Gothan City e fazem frente ao Batman, o Coringa sempre se destacou. E mesmo não tendo superpoderes, máquinas, dinheiro, inteligência ou uma quadrilha bem organizada, foi sempre o vilão que mais agradou aos fãs como a antítese do homem-morcego. O sadismo, a violência gratuita e principalmente a imprevisibilidade cheia de tiradas humorísticas que desafiam o sisudo Batman foram os elementos que garantiram ao Coringa o primeiro lugar na lista dos vilões de Gotham.

Seu visual foi criado com base na imagem do ator alemão Conrad Veidt no filme "O Homem que Ri" de 1928 e a química com Batman fez suceso logo no início. A violência gratuita sempre foi uma das suas características mais fortes e foi ele quem conseguiu dar os golpes mais profundos em Batman na evolução dos quadrinhos. Foi ele quem matou Jason Todd, o primeiro Robin e deixou a filha do Comissário Gordon, Bárbara Gordon, a Batgirl, paraplégica.

Heath Ledger soube incorporar esse espírito cruel e sarcástico do Coringa, compondo um personagem sólido e possível. Ou seja, um psicopata bastante real e que consegue mexer com público gerando uma mescla de sensações que vão do fascínio ao horror em poucos segundos, passando pelo nojo e, não raro, provocando muitas risadas.

COMPLEMENTAR
O confronto de Batman e Coringa sempre foi marcado pela complementariedade entre o caos e a ordem, a culpa e a irresponsabilidade, o escuro e o colorido, o triste e o alegre, a flexibilidade e a rigidez, o fatalismo e a imprevisibilidade. Batman tem uma personalidade neurótica, cheia de culpa e vitimismo, quer carregar o mundo nas costas e acha que não merece a luz e a alegria por não estar Ok enquanto o mundo todo, à sua volta, está. Já o Coringa acredita que está OK, enquanto o resto do mundo não está, e, por isso, ele pode tudo, não tem culpa nem limites em sua mente psicopata.

As teorias da conspiração dizem que a construção do Coringa mexeu com a cabeça de Ledger, que morreu no início do ano, de overdose de remédios. O cinema perdeu um ator promissor e a mitologia criada por Bob Kane há quase 70 anos, ganhou mais uma lenda.

domingo, 27 de julho de 2008

IMPERMANÊNCIAS 44



O mundo estava no rosto da amada

Rainer Maria Rilke





O mundo estava no rosto da amada -
e logo converteu-se em nada, em
mundo fora do alcance, mundo-além.

Por que não o bebi quando o encontrei
no rosto amado, um mundo à mão, ali,
aroma em minha boca, eu só seu rei?

Ah, eu bebi. Com que sede eu bebi.
Mas eu também estava pleno de
mundo e, bebendo, eu mesmo transbordei.


(Tradução: Augusto de Campos)

quinta-feira, 24 de julho de 2008

INVENTÁRIOS 43



Quequeg









(Continuação da série de posts “INVENTÁRIOS”)


- Homem Invisível? Ah não, isso não é possível – reagiu Beth.
- E por que não? – perguntou Ismael.
- Ninguém quer ser o Homem invisível quando é criança. Não é o super-herói favorito de ninguém.
- Pra mim, sempre foi.
- Por quê?
- Porque ele pode ficar invisível, porque ninguém vê ele quando ele não quer ser visto. Basta desaparecer e ninguém mais enche o saco. É por isso eu queria ser o Homem Invisível
- Hmmmm. E como você ia dar aula sendo invisível?
- Os alunos não precisam me ver. É só eles verem o quadro negro, a tela com o power point projetado e ouvir a minha voz.
- É um desejo estranho...
- Muito mais estranho é uma criança querer ser um super-herói com um malhinha apertada, voando por aí e sendo perfeito, tipo Super-homem.
- Uma época, eu queria ser a Mulher Maravilha, mas eu enjoei dela. Mais tarde, eu gostava mais dos heróis sombrios, como Batman, Wolverine e Sandman.
- Mas o Sandman não é super-herói.
- É sim. Até o do Neil Gaiman. Ele não salva o Mundo dos Sonhos e as criaturas dele?
- É, tem razão, então eu quero ser o Sandman, porque ele tem um elmo da invisibilidade e pode desaparecer quando quer.
- Não acredito. Você é fixado mesmo nessa coisa de invisibilidade.
- Eu não agüento essa vontade de aparecer das pessoas, de querer ser visto a todo custo, de colocar mil perfis em Orkut, MySpace, FaceBook e coisas assim. E as pessoas que se tornam famosas, então, fazem tudo pra aparecer pros paparazzi.
- Isso rende dinheiro. É marketing.
- Pra mim, aparecer só rende dor de cabeça.
- É uma coisa de ego também. As pessoas querem se sentir aprovadas, aceitas, amadas, desejadas.
- E pra isso, elas deixam de ser elas mesmas. E, no final, são amadas pelo que elas fingem que são, não pelo que são de verdade. O que dá no mesmo que não ser amado. Tá cheio de artistas nessa onda. Tipo Marilyn Monroe, que se mata porque sente que não é amada pelo que é, e sim pela imagem projetada.
- Mas não é bom que as pessoas te conheçam, que você encontre gente, converse, se sinta apreciado?
- Isso pode ser qualquer coisa. Prefiro ficar de longe, conhecer umas poucas pessoas que realmente gostem de mim como eu sou e é só. Gastar esforço pra que gente que eu não conheço goste de mim é muita perda de tempo e de energia.
- Mas assim você fica de fora de muita coisa.
- Eu sempre lembro do epílogo do livro Moby Dick, quando o navio Pequod afunda e morre o capitão Ahab e toda a tripulação, arrastados pela baleia furiosa. Ismael é o único que se salva, se agarrando num caixão que tava no barco e sai flutuando. Ele fez parte de tudo aquilo, ele viu, experimentou, acompanhou, mas não se envolveu a fundo. E saiu vivo. Pra contar a estória.
- Tá bom. Você venceu. Pode ser o Homem invisível. Mas não vá se queixar se eu pisar no teu pé ou der uma joelhada no saco. É que eu não tô te vendo.


(Continua na série de posts “INVENTÁRIOS”)

domingo, 20 de julho de 2008

IMPERTINÊNCIAS 43


Epilogue



(Moby Dick - Herman Melville)

"And I only am escaped alone to tell thee" Job

The drama's done. Why then here does any one step forth? -Because one did survive the wreck.

It so chanced, that after the Parsee's disappearance, I was he whom the Fates ordained to take the place of Ahab's bowsman, when that bowsman assumed the vacant post; the same, who, when on the last day the three men were tossed from out of the rocking boat, was dropped astern. So, floating on the margin of the ensuing scene, and in fullsight of it, when the halfspent suction of the sunk ship reached me, I was then, but slowly, drawn towards the closing vortex.

When I reached it, it had subsided to a creamy pool. Round and round, then, and ever contracting towards the button-like black bubble at the axis of that slowly wheeling circle, like another Ixion I did revolve. Till, gaining that vital centre, the black bubble upward burst; and now, liberated by reason of its cunning spring, and, owing to its great buoyancy, rising with great force, the coffin life-buoy shot lengthwise from the sea, fell over, and floated by my side.

Buoyed up by that coffin, for almost one whole day and night, I floated on a soft and dirgelike main. The unharming sharks, they glided by as if with padlocks on their mouths; the savage sea-hawks sailed with sheathed beaks. On the second day, a sail drew near, nearer, and picked me up at last. It was the devious-cruising Rachel, that in her retracing search after her missing children, only found another orphan.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

IMPERMANÊNCIAS 43


Adeus você



Adeus você
Eu hoje vou pro lado de lá
Eu tô levando tudo de mim
Que é pra não ter razão pra chorar
Vê se te alimenta
E não pensa que eu fui por não te amar

Cuida do teu
Pra que ninguém te jogue no chão
Procure dividir-se em alguém
Procure-me em qualquer confusão
Levanta e te sustenta
E não pensa que eu fui por não te amar

Quero ver você maior, meu bem
Pra que minha vida siga adiante


Adeus você
Não venha mais me negacear
Teu choro não me faz desistir
Teu riso não me faz reclinar
Acalma essa tormenta
E se agüenta, que eu vou pro meu lugar


É bom...
Às vezes se perder
Sem ter porque
Sem ter razão

É um dom...
Saber envaidecer
Por si
Saber mudar de tom

Quero não saber de cor, também
Pra que minha vida siga adiante...
Pra que minha vida siga adiante...


Marcelo Camelo

quarta-feira, 16 de julho de 2008

INVENTÁRIOS 42



Gibberish




(Continuação da série de posts "INVENTÁRIOS")

A morte sempre mexeu de um jeito estranho com Beth. Toda vez que recebia a notícia da morte de alguém, mesmo que fosse um mero conhecido, isso a abalava muito. Era uma sensação de que lhe tinham roubado algo, de que tinha sido enganada, ludibriada, traída.

- Beth.

Era como se um pedaço da vida fosse subtraído e ela não pudesse fazer nada para recuperar. Sentia raiva, medo, revolta e também culpa. Como se, de alguma forma, algo que ela tivesse feito ou deixado de fazer, contribuísse para a morte da pessoa.

- Beth.

As mortes que ela mais tinha sentido na vida haviam sido a do cachorrinho Fred, da amiga Mira e, já adulta, a da mãe. Mas parecia que a morte nunca havia chegado tão perto dela. Nem mesmo quando tinha tentado se matar.

- Beth.

Em cada morte, tinha sido diferente e ela tinha sentido de um jeito. A de Fred era fria, confusa, macia como a pelagem, seca como o barulho do porta-malas do carro se fechando, marrom como a terra.

- Beth.

Na morte de Mira, havia cheiro de cigarro, sensação de vazio, azul da nesga de céu vista da janela em intermináveis horas deitada na cama, som deBlack do Pearl Jam, gosto acre de revolta apodrecendo na boca.

- Beth.

Quando sua mãe morreu, era uma espécie de suspensão, de amortecimento dos pensamentos e dos sentidos. Mas Beth lembrava do cheiro das flores, da cor castanha da madeira do caixão, da sensação de abraços incompletos, do som de passos teimosos na cozinha vazia e da dor provocada pelo tempo irrecuperável.

- Beth.

Agora, parecia tudo agudo e ao mesmo tempo misturado. Como se o ranger da madeira de um barco jogado pelo mar tivesse um gosto, como se uma risada tivesse perfume, como se músicas queimassem e palavras espetassem como alfinetes e carinhos antigos tivessem cores esmaecidas. - Não agora - pensou Beth - Não ele.

- Ismael.

(Continua na série de posts "INVENTÁRIOS")

sábado, 12 de julho de 2008

IMPERMANÊNCIAS 42



João


A reportagem sobre João Gilberto, da revista Muito (jornal A TARDE de 13/07), feita por Katherine Funke, está espetacular. Um texto delicioso, daqueles que a gente começa a ler e não quer que termine (ainda mais para quem admira João). Katherine deu uma de Gay Talese (que fez o perfil de Frank Sinatra sem falar com ele depois que o cantor fugiu de várias entrevistas) e foi atrás do entorno da vida do recluso João para tentar esclarecer um pouco mais sobreo mito. Aproveitando os 50 anos da bossa nova, a matéria mostra a trajetória de seu criador maior, da sertaneja Juazeiro ao Leblon carioca, falando com várias pessoas que conviveram ou convivem com ele. Uma bela viagem sob a batida ritmica do texto de Katherine. Vai aí embaixo um aperitivo.


A invenção de João

João Gilberto fica de pijama o dia inteiro em seu apartamento, no oitavo andar de um prédio no Leblon, Rio de Janeiro. Não fala com os vizinhos, não atende ao telefone, nem costuma receber visitas. No sofá da sala, reinventa a própria criação, aferrado em horas de estudo de voz e violão, diante de um pequeno trecho do mar visível entre edifícios e o letreiro gigante do hotel Marina – que traz a lembrança abençoada da música homônima de Dorival Caymmi, uma das primeiras executadas pelo juazeirense em sua terra natal. Com apoio de Caymmi, ele gravou sua invenção pela primeira vez em julho de 1958. Exatas cinco décadas depois, aos 77 anos, com três filhos, cada um com uma mulher, João Gilberto continua a deixar platéias em alfa, como fará em Salvador, em setembro, e como fez, no último dia 22/6, em Nova York, onde tocou por duas horas para um público hipnotizado por ele, no Carnegie Hall. Lá, como sempre, reclamou do ar-condicionado: "Desculpem-me falar uma coisa: tem um ventinho na minha cabeça, me faz um pouco afônico". Esse é João, e o Teatro Castro Alves o aguarda.


quarta-feira, 9 de julho de 2008

IMPERTINÊNCIAS 42



Innies and outties



If a person were to try stripping the disguises from actors while they play a scene upon the stage, showing to the audience their real looks and the faces they were born with, would not such a one spoil the whole play?
And would not the spectators think he deserved tho be driven out of the theatre with brickbats, as a drunken disturber?...
Now what else is the whole life of mortals but a sort of comedy, in wich the various actors, disguised by various costumes and masks, walk on a play each one his part, until the manager waves them off the stage? Moreover, this manager frequently bids the same actor go back in a different costume, so that he who has but lately played the king in scarlet now acts the flunkey in patched clothes. Thus all things are presented by shadows.

Erasmus, The Praise of Folly

(quadro: Golconde - René Magritte)

sábado, 5 de julho de 2008

INVENTÁRIOS 41



Being There




(Continuação da série de posts "INVENTÁRIOS")

"Eu nunca estive aqui" - pensou Beth, enquanto a gerente de Recursos Humanos explicava as razões pelas quais ela estava sendo demitida da empresa. Seis anos tinham se passado, entre estágio e contratação para a equipe de psicólogas do RH daquela grande empresa do Pólo. "Estranho" - pensou de novo Beth - "isso aqui nunca fez parte da minha vida".
Naquela noite ela chegou em casa e a saída da empresa realmente não lhe trazia preocupações. Outras coisas a incomodavam por dentro. A demissão aconteceu pouco mais de um mês antes do momento em que Beth ficou parada em frente à porta, com a chave na fechadura.

Ismael estava em casa quando Beth chegou. Depois de tomar um banho, ela se sentou no sofá, ao lado de Ismael, que jogava videogame. Sem tirar os olhos da tela, Ismael começou a falar sobre os e-mails estranhos e "spams" que tinha ecebido naquele dia. Falou também, agora sem parar, das novas teorias conspiratórias que ele e seu amigo Rafael brincavam de inventar sobre como a internet e os videogames dominavam o mundo fazendo a cabeça das pessoas.

As lágrimas começaram a sair dos olhos de Beth e ela pensou, ainda uma vez: "Eu nunca estive aqui, também". Lembrou dos últimos dias malucos que vinha vivendo de um jeito descontrolado. Do jeito como foi parar num motel barato com o motoboy da empresa, um cara por quem ela não tinha nem admiração nem atração e que mal se despediu dela quando saiu. E de como, depois, sentiu culpa e vergonha, principalmente porque sabia que vinha sendo covarde e que se privava do direito de ser feliz porque não conseguiu tomar a decisão de terminar uma relação que já não lhe fazia mais bem.

- Eu preciso ir - Beth disse a Ismael.
- Ir? Aonde? Você acabou de chegar?
- Ir. Embora. Daqui. Pra sempre. Você entende?
Ismael largou o videogame e olhou para Beth.
- Eu sabia que isso tava pra acontecer. Você andava estranha ultimamente. Se arrastando pelo chão. Achei que uma manhã dessas eu ia acordar e ver você se transformando numa barata.
- Não sou eu que tô estanha. É a gente. Eu preciso ir. Entenda. Não me pergunte mais nada. E não faça nenhuma das suas piadas. Não agora. Isso é importante pra mim.
- Eu não quero que você vá embora, Beth. Eu ainda gosto de você.
- Não dá. Eu preciso ir. Mais tarde a gente conversa melhor. Agora não dá.

Beth levantou e foi até o quarto. Pegou a grande mala verde de viagem e começou a colocar suas roupas dentro. Olhou em volta e havia um monte de badulaques e pertences espalhados. Muita coisa comprada naqueles quase dois anos juntos e quase nada daquilo parecia ser seu. "Eu não estive nem mesmo aqui"- pensou.
Passou pela sala e se despediu, mas Ismael mal se virou, entretido com o videogame. Beth fechou a porta e ainda pode ouvir um grito vindo lá de dentro. Era Ismael vibrando. Tinha conseguido passar mais uma fase do jogo.

(Continua na série de posts "INVENTÁRIOS")

quinta-feira, 3 de julho de 2008

IMPERMANÊNCIAS 41



Dance me to the end of love

A pintura de Jack Vetriano (colaboração de Mariana) casa bem com a música de Leonard Cohen. Combina muito bem também com a voz de Madeleine Peyroux.





Dance me to your beauty with a burning violin
Dance me through the panic 'til I'm gathered safely in
Lift me like an olive branch and be my homeward dove
Dance me to the end of love
Dance me to the end of love

Let me see your beauty when the witnesses are gone
Let me feel you moving like they do in Babylon
Show me slowly what I only know the limits of
Dance me to the end of love
Dance me to the end of love

Dance me to the wedding now, dance me on and on
Dance me very tenderly and dance me very long
We're both of us beneath our love, we're both of us above
Dance me to the end of love
Dance me to the end of love

Dance me to the children who are asking to be born
Dance me through the curtains that our kisses have outworn
Raise a tent of shelter now, though every thread is torn
Dance me to the end of love
Dance me to the end of love

Dance me to your beauty with a burning violin
Dance me through the panic till I'm gathered safely in
Touch me with your naked hand or touch me with your glove
Dance me to the end of love
Dance me to the end of love
Dance me to the end of love

(Leonard Cohen)

terça-feira, 1 de julho de 2008

IMPERTINÊNCIAS 41



TABACARIA (trecho)




... Serei sempre o que não nasceu para isso;

Serei sempre só o que tinha qualidades;

Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,

E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,

E ouviu a voz de Deus num poço tapado.

Crer em mim? Não, nem em nada.

Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente

O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,

E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.

Escravos cardíacos das estrelas,

Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;

Mas acordamos e ele é opaco,

Levantamo-nos e ele é alheio,

Saímos de casa e ele é a terra inteira,

Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.


(Come chocolates, pequena;

Come chocolates!

Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.

Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.

Come, pequena suja, come!

Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!

Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,

Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)


Álvaro de Campos, 15-1-1928