domingo, 29 de junho de 2008

INVENTÁRIOS 40



Come chocolates, pequena






(Continuação da série de posts “INVENTÁRIOS”)

Já fazia quase seis meses que Beth não chamava por Bárbara à procura de respostas para suas perguntas. Nos últimos tempos, ela andava confusa até sobre quais seriam as suas perguntas.
Naquela noite, Beth acreditava que tinha uma pergunta boa de verdade e se arriscou a chamar Bárbara, a mulher que lhe aparecia, como se fosse do nada, com respostas para tudo.
- Quanto tempo? Achei que não precisava mais de mim – disse a mulher de vermelho, surgindo, de repente, sentada nos pés da cama de Beth.
- Pois é. Eu andava um pouco confusa. Não tinha pergunta. Ou tinha muitas. Não sei...
- E agora, você tem?
- Mais ou menos...
- Sim ou não?
- Tenho sim. Eu quero saber o que é o amor?
- Hmmmmm...
- Isso já a resposta? - Perguntou Beth
- Hahaha. Estou aprendendo a gostar e a achar engraçadas as suas ironias. Realmente a sua pergunta não é simples. A resposta dela, na realidade, é fácil, mas é difícil traduzi-la no seu nível de entendimento.
- Como assim?
- Você enxerga o amor como uma coisa só, única, constante, uniforme e coerente. Mas não é.
- Não existe um amor, mas todos os amores. Cada amor é diferente do outro e em cada momento o amor muda e se torna diferente. Pode evoluir, se tornar melhor, ou pode voltar atrás e se tornar cada vez mais egocêntrico e egoísta.
- Entendo. Mas porque é que a pessoas falam o tempo todo no amor, o amor isso, o amor aquilo, só o amor constrói e salva e o cacete a quatro... E depois a gente fica sentindo falta disso na vida da gente...
- Faz falta sim. Mas não do jeito que você imagina ou espera. Você quer tanto que uma coisa seja de determinada maneira, planejou tanto ela, construiu tantas imagens e expectativas baseadas nas coisas que você leu, ouviu ou assistiu, que qualquer coisa diferente, mesmo que seja melhor, não vai servir.
- Hmmmm, digo eu, agora...
- Você fica esperando um sorvete de chocolate. Colocou na cabeça que o que vem é um sorvete de chocolate. Está tão convencida de que o que você precisa e o que vai te fazer feliz é um sorvete de chocolate que, venha o que vier, seja o melhor sorvete, o mais gostoso do mundo, e você vai achar ruim. Simplesmente porque não é de chocolate.
- Mas o que eu faço, então, paro de tomar sorvete?
- Deixe o sorvete vir até você. Pode ter expectativas, mas nada tão duro, restritivo e inflexível. Deixe o paladar sentir, aprecie o momento, experimente, descubra a delícia da surpresa, do inesperado, do novo, do nunca experimentado.
- Você devia trabalhar com publicidade. Iria vender muito sorvete. Rsrsrs.
- Hahahaha. Gostei da idéia.
- Só mais uma pergunta: porque é que a gente cria essa expectativa de sorvete de chocolate?
- É o medo do novo. Um medo de que fuja do nosso controle. De que venha algo muito ruim, ou então, algo tão bom que a gente goste tanto que não queira mais parar.
- Interessante. É uma idéia bem estimulante.
- É verdade. O novo é sedutor mesmo. Quase tanto quanto o comodismo.
- Comodismo?
- É, o medo de se perder o que se tem, por menos que seja, leva a essa acomodação. E vou te dizer: a submissão pode, muitas vezes, ser mais sedutora do que o poder.
- Não sei se eu entendi isso.
- Não precisa. O importante é que você entendeu a coisa do sorvete de chocolate.
- Sei. O amor é um sorvete de chocolate que pode ser de outros sabores: cajá, mangaba, biri-biri, graviola, coco e até de nata.
- Mais ironias...
- Não posso evitar.
- Bom, agora eu tenho que me despedir de você. Essa foi a sua última pergunta.
- Como assim? É como aquelas coisas de gênio das Mil e Uma Noites? Tem número certo? Eu não sabia...
- Acho que agora você tem condições de responder por si mesma as suas perguntas. Não precisa mais da minha ajuda. Adeus.
- Mas eu, eu... Lá foi ela. Me deixou falando sozinha de novo. Bárbara. João. Sei lá. Que coisa. Alucinação mais doida. Eu devia ter perguntado os números da mega-sena, ou o final de Lost, ou porque o Brasil perdeu a Copa de 1998 na França. Ou, sei lá, devia ter perguntado quem ela ou ele era...

(Continua na série de posts “INVENTÁRIOS”)



quinta-feira, 26 de junho de 2008

IMPERMANÊNCIAS 40

Roda Gigante



Cada pele, um substrato,
Um feixe de sensações
Derramadas no tempo,
Colhidas ao acaso.

A vida se reveste
Do encontro
E, assim, se despe
De novo
a cada momento.

Não somos nós,
São as rodas gigantes
Que desvelam
O Viver.


Wilson Gasino

terça-feira, 24 de junho de 2008

IMPERTINÊNCIAS 40


Saudade









O texto abaixo, de Guimarães Rosa, foi postado pela jornalista Regina de Sá no sistema de mensagens instantâneas do jornal A TARDE. É bem interessante e bom para se ler quando bate a saudade das pessoas que a gente gosta e que estão longe.



"Deus nos dá pessoas e coisas,
para aprendermos a alegria...
Depois, retoma coisas e pessoas
para ver se já somos capazes da alegria
sozinhos...
Essa... a alegria que ele quer"




Guimarães Rosa

domingo, 22 de junho de 2008

INVENTÁRIOS 39



Running to stand still




(Continuação da série de posts "INVENTÁRIOS")


Beth olhou no espelho. Olhos vermelhos. Olhos pequenos. Rosto cansado. Perguntas...
Difícil reconhecer que o cinismo, que tanto a ajudara a se defender dos golpes da vida, agora não poderia protegê-la.
Vontade de nada. Nenhuma música. Nenhuma posição na cadeira. Sem fome. Sem capacidade de reação. Lembrou do conselho de uma amiga:
- Quando a gente não sabe o que fazer, então é melhor não fazer nada.
Remexeu os CDs, tirando um a um da estante, mas não achou nenhum que quisesse ouvir. Olhou os arquivos de música no computador: nenhuma que prestasse naquela hora.
Pensou em algo, talvez dos anos 80. Lembrou do comentário de outra amiga, dizendo que a década pós virada do milênio glorificava os anos 80 e rejeitava os 90. Assim como, nos anos 90, todo mundo cultivava os 70 e torcia o nariz para os 80. E assim por diante.
Uma música. Sim, uma música dos anos 80. Procurou. Queria ouvir essa. Dos anos 80. E ouviu algumas dezenas de vezes sem parar naquela noite. "She's running to stand still". U2.


Running to Stand Still

And so she woke up
Woke up from where she was
Lying still
Said I gotta do something
About where we're going

Step on a steam train
Step out of the driving rain, maybe
Run from the darkness in the night
Singing ha, ha la la la de day
Ha la la la de day
Ha la la de day

Sweet the sin
Bitter the taste in my mouth
I see seven towers
But I only see one way out
You got to cry without weeping
Talk without speaking
Scream without raising your voice

You know I took the poison
From the poison stream
Then I floated out of here
Singing...ha la la la de day
Ha la la la de day
Ha la la de day

She runs through the streets
With her eyes painted red
Under black belly of cloud in the rain
In through a doorway she brings me
White gold and pearls stolen from the sea
She is raging
She is raging
And the storm blows up in her eyes

She will...
Suffer the needle chill
She's running to stand...
Still


(Continua na série de posts "INVENTÁRIOS")

sexta-feira, 20 de junho de 2008

IMPERTINÊNCIAS 39


Nelsinho e a operação de Zélia

Há alguns posts atrás, contei a história do jornalista Nelson Bortolin e o ataque das baratas ensandecidas (“Nelsinho e as Baratas”). Hoje, quero contar a história, também muito engraçada, de outro Nelsinho, o Nelson Luís Conceição, colega de redação de A TARDE.

O fato aconteceu nos dias que antecederam a morte da escritora Zélia Gattai, companheira de vida de Jorge Amado. No período em que a escritora estava internada no hospital, parentes, fãs e amigos acompanhavam diariamente as notícias do estado de saúde dela, aguardando melhoras. O grupo A TARDE estava lá diariamente, recebendo os boletins médicos e ouvindo os familiares.

O pessoal do On Line mantinha uma rotina rigorosa de acompanhamento diário e o número de acessos de internautas mostrava o grande interesse dos baianos pela saúde de Zélia. Um dos momentos mais críticos foi o da operação que retirou um tumor da escritora. Procedimento arriscado, mas que poderia representar uma esperança de recuperação.
Nesse dia, a repórter Clarissa Borges foi até o hospital, registrou o boletim médico que dava conta do sucesso da operação. Também fez um breve vídeo mostrando entrevistas com a família de Zélia falando das expectativas de melhora.

Logo que Clarissa aprontou o material, Nelsinho editou e botou no ar, destacando o vídeo da repórter. Mas o título não foi muito feliz, misturando a notícia da operação em texto com o vídeo do depoimento dos familiares. O resultado – não planejado - foi uma chamada de conteúdo extremamente mórbido.
O título ficou um desastre daqueles dignos das antologias do jornalismo, tipo de acidente ao qual todos estamos sujeitos num momento de distração. E Nelsinho, bom jornalista que é, logo depois de alertado, mudou o título, que era o seguinte:

“Zélia é operada e tumor é retirado, veja vídeo”

quinta-feira, 19 de junho de 2008

IMPERMANÊNCIAS 39


O Castelo da Não Existência



Eram apenas cinco os degraus que levavam à grande porta da casa imensa, que quase tomava conta de todo o quarteirão. O homem subiu os dois primeiros e parou. Os degraus eram altos e dali ele via o pôr do sol por entre as árvores que cercavam os fundos da propriedade. Tudo durou menos de um segundo e logo ele subiu os três últimos, chegando à velha porta de madeira maciça.
O som da campainha pareceu familiar, mas ele não conseguiu recordar o que era. Tinha mais de trinta anos e um rosto ainda juvenil, embora o seu olhar distante não tivesse mais idade naquela manhã de outono de 1938. Às vezes, algumas lembranças percorriam rapidamente a memória, mas ele já não recordava mais como chegara até ali.
Não lembrava que caminhos estranhos o haviam levado àquela velha escada de pedra, àquele pôr do sol, e àquela grande porta de madeira. Já não lembrava mais o ponto onde as memórias haviam deixado de fazer sentido. Em que momento exato ele havia deixado de acreditar nas coisas. O lugar onde havia enterrado todos os seus sonhos e esperanças, como se fossem o tesouro de um velho pirata que sabe que vai morrer.
Uma senhora com aspecto solene de criada abriu a pesada porta, enquanto o sol sumia no horizonte. Pensou em sorrir, mas não fazia sentido.
- Sou Antonio Trencavel - apresentou-se - o sr. Augusto me aguarda.
A velha criada, sem perder a solenidade, convidou-o a entrar e sentar-se na ante-sala. Sentou num sofá de couro antigo e, por um momento, examinou os quadros colocados na parede à sua volta. O maior deles retratava um homem já de idade avançada, vestido com muita elegância. E no quadro, o homem, sem que isso fizesse qualquer sentido para Antonio, sorria.





(Obs.: Este o primeiro capítulo do romance O Castelo da Não Existência, ainda inédito. Foi o primeiro romance que escrevi e tem um sabor todo especial para mim. Ainda pretendo publicá-lo, mas, se não conseguir, postar o primeiro capítulo aqui no blog já é um gostinho.)

domingo, 15 de junho de 2008

INVENTÁRIOS 38


Femme accroupie




(Continuação da série de posts "INVENTÁRIOS")

Com o passar dos meses, vivendo junto de Ismael, Beth começou a perceber que havia algo que realmente criava uma grande distância entre os dois. Não que Ismael não fosse bom para ela, ou que não lhe desse atenção, carinho, sexo e a força constante do seu bom humor e leveza. Mas havia uma espécie de buraco dentro dela que a presença de Ismael não conseguia preencher.
Era como se Beth tivesse uma fome que jamais pudesse ser saciada, uma sede que nem toda água do mundo pudesse matar, um desejo que nunca era satisfeito e permanecia como uma dor que nunca parava de doer. Demorou um pouco também para Beth perceber que não poderia culpar Ismael por isso, já que o problema era seu.
Mas essa percepção não veio sem uma certa decepção. Para ela, Ismael, repentinamente, desceu do alto dos céus para o rés do chão (lugar do qual ele próprio talvez jamais tivesse desejado sair). Ismael sentiu esse distanciamento de Beth, mas achou normal, já que considerava exageradas mesmo as expectativas dela.
Para Beth, porém, o impacto foi grande, já que ela depositava nele a esperança de que um dia sua angústia fosse mitigada. E o vazio pareceu crescer diante de Beth com a constatação de que sua alma era insaciável.
O que ela sentiu então lhe lembrou da descoberta da poesia de Florbela Spanca, quando tinha 19 anos. Beth se identificava muito com a poesia dela e com a arte de outras mulheres desesperadas. Com as esculturas doloridas de Camille Claudel, a hipersensibilidade de Billie Holiday, as visões do mundo e de si mesma de Frida Kahlo, os gritos de Janis Joplin e a intensidade de Elis Regina.
Ultimamente, gostava de ouvir Amy Winehouse, mas achava que o sofrimento dela, embora fosse verdadeiro, era mais uma herança do que um sentimento original. Nessas horas, nada melhor do que a poesia de Florbela e o seu poema preferido era “Eu...”

EU...

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...

Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber por quê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou!

Florbela Spanca

(Continua na série de posts “INVENTÁRIOS”)

IMPERMANÊNCIAS 38



Os Enamorados



A carta dos Enamorados ou dos Amantes (Tarô de Crowley) é a carta da dúvida, do momento de decisão. Na evolução da consciência humana representada pelo tarô, esta carta de número 6 mostra o desenvolvimento da capacidade de escolher o próprio caminho. E mais: de arcar responsavelmente com essa decisão.

A carta anterior, O Papa, representa o conjunto de valores morais que recebemos de nossos pais, da cultura vigente, escola, religião, etc. Mas assumir o próprio caminho requer que tomemos decisões próprias que muitas vezes não estão previstas em códigos e preceitos.

A figura clássica do Tarô de Marselha mostra um jovem decidindo entre duas mulheres tendo acima a figura do cupido apontando para a da direita. Seus pés se dividem: um em cada direção. E se o corpo pende em movimento para a direita, seu olhar (e cabeça – racional) se volta teimosamente para a esquerda.


No livro “Jung e o Tarô”, Sallie Nichols interpreta a mulher da esquerda como a mãe super-protetora que dificulta ao filho assumir o controle da própria vida. E a jovem da direita, muito parecida com ele, seria sua ânima, seu lado feminino e intuitivo que precisa se desenvolver para que ele tenha uma vida plena e possa assim tomar suas decisões.


De fato, o ensinamento que a carta traz é o de que estamos prestes a tomar uma decisão difícil. Para tal, será preciso escolher entre algo seguro e conhecido, que já está em nossa vida, e algo mais novo, que pode nos assustar. A energia da paixão, representada pelo Cupido, que dá um empurrãozinho, torna claro que a evolução exige corrermos riscos. O impulso erótico de construir opõe-se, assim, à tendência da conservação (e posterior degradação) e nos empurra para o desconhecido e para a possibilidade da morte e renovação que está, entre outras coisas, no sexo.


Os Enamorados estão ligados ao signo de Gêmeos, à dualidade, à ambivalência, à oscilação entre realidade e fantasia, entre mundo material e mundo espiritual, entre bem e mal, entre passado e futuro, entre seguir em frente e voltar atrás, entre buscar o aconchego do ninho e desafiar o azul do céu. Mas é esse movimento de oscilação, de tentativa, erro, acerto e aprendizado é que faz o crescimento da consciência.


Um ponto importante: essa carta também é o primeiro momento no Tarô em que aparece o outro como nosso igual, nossa contraparte, nosso espelho. E a entrada do outro em nossa vida e o reconhecimento dele como nosso igual nos traz a cnsciência da responsabilidade sobre as nossas decisões, já que podemos feri-lo.

Enfim, a carta dos Enamorados não traz nem sim, nem não, mas a dúvida, a possibilidade de decidir e escrever o próprio caminho. A potencialidade de assumir as rédeas do próprio destino, sabendo de antemão que a energia da Vida nos empurra para frente, nos prometendo todas as dores e delícias que pudermos abraçar.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

IMPERTINÊNCIAS 38


A vírgula



Texto da campanha dos 100 anos da ABI (Associação Brasileira de Imprensa)

A vírgula pode ser uma pausa ...ou não.
Não, espere.
Não espere.

Ela pode sumir com seu dinheiro.
23,4.
2,34.

Pode ser autoritária.
Aceito, obrigado.
Aceito obrigado.

Pode criar heróis.
Isso só, ele resolve.
Isso só ele resolve.

E vilões.
Esse, juiz, é corrupto.
Esse juiz é corrupto.

Ela pode ser a solução.
Vamos perder, nada foi resolvido.
Vamos perder nada, foi resolvido.

A vírgula muda uma opinião.
Não queremos saber.
Não, queremos saber.

Ou muda uma atitude.
Matar o Rei não é crime!
Matar o Rei não, é crime!

Uma vírgula muda tudo.

A.B.I.: 100 anos lutando para que ninguém mude uma vírgula da sua informação.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

INVENTÁRIOS 37



Ambivalências




(Continuação da série de posts “INVENTÁRIOS”)

Um pequeno coelho prateado enfeitava o chaveiro que Beth ganhou de Ismael no dia em que os dois passaram a morar juntos. Mais tarde, no dia em que ficou parada em frente à porta de casa, Beth pensou em quantas vezes tinha brincado com o chaveiro enquanto os pensamentos iam e vinham em momentos de distração ou de nervosismo.
- Um coelho? – perguntou Beth.
- É. Um coelhinho – respondeu Ismael - pra dar sorte. É símbolo de fartura.
- E de apetite sexual...
- Isso também – riu Ismael
- Isso é bom.
- Você parece um pouco nervosa. Eu tenho visto isso nos últimos dias. Por que isso, meu amor?
- Sei lá. Fico pensando. Pra mim é uma coisa séria a gente vir morar junto. Pode dar errado, não sei...
- Isso pode ser qualquer coisa. Pode dar errado com a gente morando separado também...
- É que tudo tem sido tão bom com a gente junto. Eu não queria estragar isso.
- Eu entendo. Só não sei por que você se preocupa tanto.
- Eu fico tentando entender o sentido das coisas, da vida...
- E eu é que sou professor de filosofia. Você já pensou que a vida pode não ter sentido nenhum?
- Algumas vezes. Você pensa assim?
- Penso. E acho que além de não ter sentido nenhum, tudo o que a vida faz sempre é nos provar justamente isso, uma vez atrás da outra, até que a gente perca a esperança de que ela tenha um sentido.
- Mas isso já seria um sentido, não seria?
- Hahahaha. Agora você me pegou. Seria sim. Mas é um não sentido. Hahaha.
- Não sei, Ismael. Você parece confortável em não acreditar em nada. E eu preciso sempre acreditar em alguma coisa.
- Você precisa parar de querer carregar o mundo nas costas, de ficar cultivando essas dores, essas experiências ruins do passado. De ficar encasquetando com tudo, achando que tudo tem um porquê.
- Acho que um dia eu já não vou ter mais no que acreditar, mas aí eu já não vou ter mais nenhuma dúvida mesmo. Mas isso é triste. Acho que se a gente não tem mais dúvidas, só tem certezas, e se só tem certezas, não tem mais esperanças.
- Isso é poesia, não é filosofia.
- É que eu achava que o amor poderia ser uma certeza, entende?
- Mas não é. Não existem certezas eternas. Muito menos no amor. E, como diz aquele livro do sociólogo Pedro Demo, a gente só tem a certeza da incerteza.
- É difícil, pra mim, viver assim.
- É pra todo mundo. Mas é assim que as coisas são. A gente não sabe do amanhã.
- Mas eu preciso de referências.
- A única referência com a qual você pode contar é você mesma. Muita gente escolhe Deus, a família, uma ideologia, uma instituição, uma busca, um projeto de vida e até um amor. Aliás, é muito comum as pessoas procurarem isso numa pessoa amada. Mas ela não pode dar isso. Ninguém pode. Você só pode ter certeza dentro de você mesma.
- Mas eu não tenho. É tudo muito confuso, incoerente e inconstante. Eu mudo de idéia a cada hora. Não sei o que fazer e não sei que caminho eu tenho que seguir. Como eu posso ser referência.
- Você vai ter que se virar. Vai ter que aprender. Se não, você nunca vai ser feliz de verdade. Vai viver a vida sempre em função de alguém ou alguma coisa, num estado de apreensão e insegurança insuportável.
- Me sinto perdida e sozinha assim...
- É assim que todos nós estamos. Você precisa aprender a lidar com isso, com a solidão das nossas decisões. O que não significa que eu não esteja do teu lado, te apóie e te ame. Mas não coloque em mim as tuas certezas. Não é justo comigo nem com você. Muito menos com o nosso amor.



(Continua na série de posts “INVENTÁRIOS”)

terça-feira, 10 de junho de 2008

IMPERMANÊNCIAS 37

A internet vem mudando o fazer jornalismo e todas as nossas relações com a linguagem, passando cada vez mais do linear para o sistêmico. Esse vídeo mostra que o repensar a linguagem também nos leva a repensar a nós mesmos. Bem bacana.

sábado, 7 de junho de 2008

IMPERTINÊNCIAS 37


Música inaudível




A morte dança com a vida
Com encanto e delicadeza,
Como dever ser e será.

E como posso ficar sem ouvir essa música
Se em tuas mãos escreves o meu futuro?

Quando ouvires nossas respirações juntas,
Não tenhas medo da música,
Pois quando nossos olhares se encontram
É minha alma que chama a tua
pra dançar.


Wilson Gasino

sexta-feira, 6 de junho de 2008

INVENTÁRIOS 36


ECOS




(Continuação da série de posts “INVENTÁRIOS”)

Seis semanas antes do dia em que Beth está parada, de pé, em frente à porta com a chave na mão, ela chora, sentada no chão de um banheiro sujo de bar. Bêbada, ela não lembra da música de Cazuza e os pensamentos se traduzem em palavras que se repetem em círculos dentro da cabeça como um eco doentio.

Tudo. Tudo. Agora nada. Nada. Nada. O mesmo. O mesmo. Ou diferente? O outro. O outro. O outro. O outro. Tudo. Tudo. Tudo. Por que? Por que? Por que? E eu? E eu? E eu? Sina. Sina. Sina. Tudo. Tudo. Nada. Nada. E agora? E agora? O outro. O outro. Os outros. Os outros. Por que? Por que? Por que? Sina. Sina. Sina. Eu vi. Eu vi. Eu vi. Eu sabia. Eu sabia. Eu sabia. Eu sempre soube. Eu sempre soube. Eu sempre soube. Não. Não. Não. Não pode ser. Não pode ser. Não pode. Diferente. Diferente. Igual. Igual. Tudo. Tudo. Tudo. Tudo. E agora... E agora... E agora... Sina. Nada. Sina. Nada. Sina? Nada? Nada. Sina. Por que? Porque. Tudo? Tudo? Tudo... Tudo... Porque... Porque... Porque... Sina... Sina... Nada... Sina... Nada não. Nada. Não. Nada? Não? Não? Não! Não! Não! Não... Não... Não... O mesmo. O mesmo. E agora... Por que? Por que? Por que? Sempre soube. Soube? Soube? Soube... Soube... E eu? E eu? E eu... E os outros? E o outro? O outro!!! O outro... O outro. Sina. Sina. Agora. Sina. Não. Tudo. Nada. Eu. O outro. O outro. O outro. E agora? E agora? E eu? E eu? Diferente. Diferente. Igual? O mesmo? Folhas. Folhas. Folhas. Passam. Passam. Passam. Tudo. Tudo. Tudo. Mesmo. Mesmo. Mesmo. Morte. Morte. Morte. Fica. Fica. Fica. Vai. Vai. Vai. Chega. Chega. Chega...

(Continua na série de posts “INVENTÁRIOS”)

segunda-feira, 2 de junho de 2008

IMPERMANÊNCIAS 36


Poetas

O jornal A TARDE tem muitos poetas. Só pra citar alguns: Kátia Borges, Katherine Funke e Florisvaldo Mattos, sem falar no cordelista Zezão (que está deixando a Redação). Tive oportunidade de ler também um ótimo livro de contos de Luís Lasserre.
Nessa toada, segue abaixo poema do jornalista, violeiro e poeta guanambiense Ari Donato. Para quem quiser conhecer um pouco mais do trabalho de Ari, o blog dele é o Modas e Viola. Detalhe: foi Ari quem gravou pra mim e me apresentou o trabalho do grande violeiro Elomar.

Lua

O que dizer para definir coisas especiais,
se as palavras criadas por nós
nunca determinam o que pensa o coração.
Pois ele, lá dentro, próximo à alma,
deixa transbordar aquilo que sente, que lhe toca,
enquanto as palavras, cá fora,
têm sentido geral, nunca específico, como quer o coração.
Mas, arrisco com as palavras
e puxo, do meu coração, meu sentimento:
Você está além,
acima da pequena vida material que me cerca.

Ari Donato