sexta-feira, 30 de maio de 2008

IMPERTINÊNCIAS 36



Holofernes e João Batista




O Erotismo na Arte do Século 20 foi o tema escolhido por Camille Paglia para a palestra realizada em Salvador, no TCA, na última quarta-feira. Bem interessante, embora, talvez, o formato escolhido pela autora tenha sido equivocado e extenso demais para um evento num teatro. Mesmo assim, deixou reflexões importantes sobre a forma como o erotismo foi retratado no século passado, período de intensas reformulações na relação do ser humano com a imagem.

Começou com o quadro “Danaë”, de Gustav Klimt, mostrando a mulher sensual e inacessível, imagem que, segundo a escritora pós-feminista, fascina os homens através dos tempos. Danaë, do mito grego, vive trancada numa torre para preservar sua “pureza”, mas isso não impede o olímpico Zeus de “possuí-la” transformando-se numa chuva de ouro. Metáfora desse voyeurismo masculino, da ânsia do olhar, da vontade de retratar como forma de possuir, de controlar.

Em sua exposição, Camille Paglia passeou por imagens de mulheres inatingíveis, calipígeas, voluptuosas, misteriosas e até cruéis, indo de vaginas dentatas a cortadoras de cabeças bíblicas como Judith e Salomé. Sempre baseando-se na fixação do homem por essas imagens, mostrou mais de 60 imagens. Muitas delas óbvias, bastante conhecidas e dissecadas pelos estudiosos da arte.

Mas foi interessante ver a evolução da forma de representação do erótico, que começa o Século 20 marcada pelo nu feminino e termina com o forte apelo da androginia. Fica clara também a transferência de parte do poder de representação e definição de mundo das mãos dos homens para as das mulheres. Muda, pelo menos em parte, essa forma de controle e são abertas novas possibilidades.

O quadro de Frida Kahlo “O Abraço Amoroso entre o Universo, a Terra (México), Eu, o Diego e o Señor Xólotl” mostra um pouco dessa mudança de mãos do poder. A chegada ao ponto de inflexão, segundo Paglia, estaria patente na tela “Portrait de Madame Allan Bott”, de Tâmara de Lempicka, com seu glamour e art nouveau. E, para mostrar a maior abertura na forma do olhar o erótico, Camille Paglia termina o Século 20 apresentando fotos de Helmut Newton.

Nas questões finais da platéia, a escritora se soltou um pouco do esquema quadrado da apresentação e falou sobre a discussão de papéis mais atuais. Camille Paglia concorda com a opinião dominante de que os homens estão confusos e que as mulheres não sabem muito bem o que querem porque conquistaram junto com os merecidos direitos algumas coisas que não desejavam do mundo masculino, como a competição desenfreada. De qualquer forma, ela emendou que mesmo Freud tentou explicar alma feminina e não conseguiu.

Concordo com ela (e com Freud). Estou lendo um livro chamado “Mulheres que Correm com os Lobos”, que Andréa Lemos me emprestou. A autora, Clarissa Pinkola Estés, tenta explicar as várias dimensões da alma feminina através dos mitos adultos ou infantis que falam sobre a mulher selvagem.

É bem interessante. Mas, para mim, que convivo com esse universo desde minha mãe, avós, irmãs, professoras, ex-mulher, filha, ex-namoradas, colegas de trabalho e tantas amigas, ainda é algo muito misterioso o mundo profundo e complexo da alma feminina. Seguindo a tese de Camille Paglia, a arte talvez seja um dos melhores caminhos para tentar compreende-lo um pouco mais.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

INVENTÁRIOS 35



Ouriços e abraços




(Continuação da série de posts "INVENTÁRIOS")


Quando Beth era criança, assistia aos desenhos e filmes na TV, lia livrinhos e ouvia as estórias que a professora contava na escola. Gostava sobretudo dos finais felizes, onde tudo era fácil, límpido e mecanicamente justo. Onde os mocinhos eram mocinhos e os bandidos eram bandidos e estes sempre acabavam mal.
Pessoas velhas, feias, deformadas, pobres e que viviam em lugares sujos e escuros eram sempre as vilãs das estórias. Sofriam de inveja, cobiça e ciúme. Tinham instinto cruel e vingativo. Não amavam ninguém.
O mundo, então, para Beth, não possuía tons de cinza. Não havia dúvidas, não havia sombras. Havia os bons e os maus e só as pessoas ruins podiam machucar os outros.
Houve um tempo, também, em que Beth achou que tinha algo de mau dentro si, porque seus pais a repreendiam o tempo todo e ela sentia culpa por pequenas coisas que fazia de errado. Mais tarde, aprendeu que poderia ser perdoada, mas continuava achando que fazia coisas ruins.
Adolescente, Beth se apaixonou muitas vezes e, em algumas delas achava que era amada. Foi aí que descobriu que mesmo pessoas que amam podem machucar. E que quanto mais se ama alguém, mais se pode ser machucado por esta pessoa com palavras ou ações descuidadas.
Muitos anos depois, morando com Ismael, Beth ainda tinha medo da possibilidade de ser machucada. Procurava se proteger da dor que poderia sentir e quanto mais via que Ismael não tinha o mesmo medo, mais fechada ficava.
Dois anos juntos e ele parecia imune a inquietações e de uma segurança absurda em relação a tudo. Não tinha ciúmes, não perguntava sobre como iam as coisas no trabalho dela, o que ela pensava, o que sentia ou aspirava. Não procurava fazer nada para agradá-la, para mantê-la junto dele. Parecia indiferente e acomodado com a situação.
Beth, por outro lado, parecia sempre estar mudando sua maneira de pensar e questionava todas as coisas o tempo todo. Se para Ismael, as coisas à volta não precisavam mudar nunca, para Beth havia a necessidade de coisas novas sempre.
No começo, a passividade de Ismael, que a ouvia questionando uma coisa aqui e outra ali, mas aceitando tudo, deixava Beth contente. Com o tempo, passou a irritá-la e o silêncio dele, ironicamente, ficava ainda maior.
Depois de um tempo, ela contava cada vez menos coisas a ele e ele perguntava cada vez menos também. E o silêncio foi abrindo um grande espaço entre os dois. E Beth sentia falta de seu amigo querido de antes.
Certa noite, comentou com Ismael que tinha lido um artigo numa revista falando sobre a dificuldade que as mulheres tinham de encontrar o seu homem ideal:
- De um lado, as mulheres querem a segurança do amigo, do companheiro que entenda, incentive e ame incondicionalmente. De outro, elas querem o amante, o homem misterioso que traga o fogo, o desejo e deixe elas inseguras – comentou Beth.
- É difícil entender isso.
- Não sei se isso é só da mulher, não. Acho que tem a ver com todo mundo. É porque o sexo só é bom se tem um tipo de tensão. Se tem mistério, disputa de poder, controle e outras coisas assim.
- Mas como é que fica a segurança de uma relação mais profunda?
- Não sei. Talvez quanto mais a gente se conhece e se entrega, mais tem a perder e isso aumenta a tensão, o poder que o outro tem sobre a vida da gente e isso pode aumentar o desejo. Você não acha?
- Não sei. Acho que, num determinado ponto, as coisas começam a esfriar e não tem mais jeito – respondeu Ismael, num tom de suspiro, que deixou Beth triste.
Beth não insistiu na conversa. Abraçou o travesseiro e lembrou das estórias infantis, dos finais felizes e dos mocinhos que eram mocinhos e dos bandidos que eram bandidos. Sempre.


(Continua na série de posts "INVENTÁRIOS")

terça-feira, 27 de maio de 2008

IMPERMANÊNCIAS 35

SUPERTRAMP - THE LOGICAL SONG

When I was young, it seemed that life was so wonderful,a miracle, oh it was beautiful, magical.And all the birds in the trees, well they'd be singing so happily,joyfully, playfully watching me.But then they send me away to teach me how to be sensible,logical, responsible, practical.And they showed me a world where I could be so dependable,clinical, intellectual, cynical.There are times when all the world's asleep,the questions run too deep for such a simple man.Won't you please, please tell me what we've learnedI know it sounds absurd but please tell me who I am.Now watch what you say or they'll be calling you a radical,liberal, fanatical, criminal.Won't you sign up your name, we'd like to feel you'reacceptable, respectable, presentable, a vegetable!At night, when all the world's asleep,the questions run so deep for such a simple man.Won't you please, please tell me what we've learnedI know it sounds absurd but please tell me who I am.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

IMPERTINÊNCIAS 35


Escolhas

Costumo, à noitinha, meter-me pelo meio do meu povo, rodeando-o com o silêncio do meu amor. E vejo a angústia invadir quer o inquieto, exclusivamente deslumbrado por aquilo que brilha com uma luz inútil, quer o poeta cheio de amor pelos poemas, mas que nunca escreveu o seu, quer a mulher apaixonada pelo amor, mas incapaz de devir por não saber escolher. Eles bem sabem que eu os curaria da angústia se lhes permitisse esse dom que exige sacrifício e escolha e esquecimento do universo. Porque determinada flor é, em primeiro lugar, uma renúncia a todas as outras flores. E, no entanto, só com esta condição é bela.

Antoine de Saint-Exupéry – “Cidadela”

domingo, 25 de maio de 2008

INVENTÁRIOS 34


Circunstâncias




(Continuação da série de posts "INVENTÁRIOS")



Numa das primeiras vezes em que Beth e Ismael saíram juntos, ela falou a ele sobre os sonhos que tinha. Falou também das visões com o homem de terno branco que tinha respostas a todas as perguntas que ela fazia.
Ismael achava tudo muito interessante, fazia perguntas e discutia detalhes. Nunca questionava nem tentava explicar. Para ele, o mundo era grande e cheio de coisas que simplesmente não tinham explicação.
- Isso pode ser qualquer coisa! – era uma das frases preferidas dele.
Na noite anterior, Beth tivera um sonho que lhe tinha deixado impressionada. No sonho, ela andava por um belo campo num dia de sol, num lugar plano e absolutamente tranqüilo. De repente, sem qualquer explicação, o chão se abriu sob os seus pés ela caiu desesperada num vazio sem fim. Acordou assustada e com a sensação muito forte do inesperado.
Não sabia explicar aquilo e o sonho a assustava. Comentou com Ismael, que achou interessante, mas disse que ela não devia se preocupar com isso.
- Pode ser só um sonho – disse ele.
- Mas e se for um sinal ou qualquer coisa assim? Uma mensagem, um pedido de socorro do meu inconsciente?
- Se fosse, acho que você ia entender. Quem quer mandar uma mensagem quer que o outro entenda. Não faz tanto mistério com enigmas.
- Mas no plano dos sentimentos as coisas não são tão simples assim. Tem muitas coisas que não passam pelo racional. Você não se preocupa com isso? – questionou Beth.
- Essas coisas não me preocupam tanto.
- É mesmo?
- É. Eu sinto você com a alma angustiada, sempre cheia de perguntas, mas comigo as coisas não são assim. Prefiro ver como os outros lidam com as vidas deles e estudar os pensadores da filosofia. Não fico pensando tanto assim sobre a minha vida. Fazendo esses balanços e inventários.
- Eu preciso sempre disso pra saber onde estou, como cheguei aqui e pra onde eu vou.
- Acho que eu sempre fiquei no mesmo lugar. Acho que não vou a nenhum lugar no mundo. É ele que se mexe. Eu fico parado.
- Não sei se isso é bom ou ruim...
- É o que é. Só isso.



(Continua na série de posts "INVENTÁRIOS")

sexta-feira, 23 de maio de 2008

IMPERMANÊNCIAS 34


Processos criativos

Uma nota publicada pelo jornalista Levi Vasconcelos na coluna Tempo Presente (18/05/08), do jornal A TARDE, mostra um pouco como era o processo criativo de Jorge Amado. É bonito e engraçado, mostrando a familiaridade que ele mantinha com seus personagens.

O destino de D. Flor
Zélia Gattai, que agora nos deixa, contou-nos num dos seus momentos de descontração, em Itacimirim, que no dia em que estava finalizando D. Flor e Seus Dois Maridos, Jorge Amado chegou às 11 da noite, na dúvida sobre com quem D. Flor ia ficar, se com Vadinho ou Teodoro, o marido morto ou o vivo. “Vou dormir”, disse ela. “Vá. Eu vou permanecer mais um pouco aqui até ver essa cidadã (D. Flor) decidir quem ela quer”. Dia seguinte, no café da manhã, ela perguntou: - “E aí, Jorge? Ela ficou com quem?”. E ele:– Aquilo é uma vagabunda. Ficou com os dois.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

IMPERTINÊNCIAS 34


Try a little tenderness

Fui ver ontem "My Blueberry Nights", que foi traduzido para "Beijo Roubado" em português, o que, além da imprecisão, também é uma perda poética. O novo filme de Wong Kar-Wai, já encaixado nos padrões holliwoodianos, perde muito do encanto dos trabalhos anteriores, mas mantém algumas das qualidades também. Os planos intimistas, os movimentos de câmera lentos, as cores primárias berrando e o olhar implacável sobre as dificuldades de comunicação das pessoas ainda estão ali.

Gostei muito da metáfora do vaso com as chaves de pessoas que terminaram relacionamentos. É interessante quando o personagem de Jude Law, o inglês Jeremy, dono do bar, diz que ao deixar ali as chaves de uma casa que antes dividiam, as pessoas mantém a sensação de que ainda poderão reabrir essas portas um dia. Relacionamentos terminados, mas sempre com a possibilidade de retorno, porque a vida dá voltas. Mas é o próprio Jeremy quem depois reflete: mas quando voltamos e abrimos a porta, aquela pessoa já mudou, não é mais a mesma.

Mais uma metáfora interessante, e essa dá o nome ao filme, é a respeito da torta de blueberry, que fica todas as noites intacta no balcão do bar, sem que ninguém experimente. As pessoas preferem degustar as opções mais comuns, como maçã e chocolate. Quem nunca se sentiu assim um dia, como a torta blueberry, levante o garfo.

Outro ponto interessante do filme é o drama do policial abandonado pela mulher e que insiste em tentar reatar o relacionamento. O filme mostra a dificuldade de por um ponto final, de terminar uma relação, de deixar o outro ir, de "morrer para o outro". É muito difícil de ouvir de quem ainda se gosta que não se significa mais nada para essa pessoa. É difícil entender os porquês.
Como comenta mais uma vez o dono de bar: - procuramos razões para explicar esses rompimentos, mas os sentimentos não podem ser enquadrados pela razão. As razões simplesmente não existem.

Apesar de ser despretensioso e até simples como cinema, o filme de Kar-Wai tem sim algumas ambições de retratar as relações humanas. E vai bem, embora o formato circular da trama nos deixe a sensação de um final forçado. Mas, se não existem explicações para o amor, para a arte, também não devemos cobrar isso.

Rachel Weisz e Natalie Portman estão competentes e lindas, como sempre. E Norah Jones vai bem, embora, na minha opinião, seja melhor como cantora.

A trilha sonora é outra coisa bacana do filme, com Cat Power (que aliás aparece no filme como Kátia, a ex-de Jeremy) e inclui ainda Norah Jones, Otis Readding cantando Try a Little Tenderness e Cassandra Wilson cantando "The Harvest Moon" de Neil Young, entre outras coisas bacanas.

Blueberry Pie
Para quem quiser conhecer melhor a torta de Blueberry, aqui vai uma receita que encontrei na internet:
Ingredientes
2 ½ xícaras de chá de farinha para bolo
½ xícara de chá de açúcar
½ xícara de chá de manteiga amolecida
3 gemas
1 colher de chá de raspas de limão
¼ colher de chá de sal
Preparo
Coloque a farinha em uma tigela. Usando um misturador de massa, misture o açúcar e a manteiga, junte as gemas, o limão e o sal. Trabalhe a massa para que tudo esteja bem misturado, mas não a trabalhe demais. Descanse a massa por 30 minutos, abra bem fina, com 3 mm de espessura. Coloque-a em uma forma untada de 25 cm. Asse no forno a 180ºC por 15 minutos.
Recheio
Ingredientes
1 ¾ xícara de chá açúcar
¼ xícara de chá de maisena
2 ovos
1 colher de sopa de manteiga
1 ½ xícara de chá de leite
1 colher de chá de essência de baunilha
3 xícaras de chá de blueberries
¼ xícara de chá de geléia de maçã
Preparo
Misture uma xícara de açúcar à maisena e aos ovos em banho Maria. Junte a manteiga, o leite e a baunilha, e cozinhe até ficar um molho grosso. Coloque numa forma. Combine o açúcar restante, com os blueberries. Espalhe sobre o recheio de creme, volte ao forno e continue a assar por 25 minutos. Retire do forno, esfrie. Aqueça a geléia de maçã, pincele as blueberries e coloque na geladeira. Fica ótimo com sorvete de creme.

terça-feira, 20 de maio de 2008

INVENTÁRIOS 33


Persona 2



(Continuação da série de posts “INVENTÁRIOS”)

Beth ouviu as palavras de Bárbara, mas aquilo não a deixou satisfeita.
- Mas isso vira uma pressão. Todo mundo fica cobrando que você seja o tempo todo alguém moderno, na moda, que saiba das coisas...
- Todo mundo quem? – questionou Bárbara.
- Ora, todo mundo, as pessoas que tão em volta.
- Você já parou para pensar se isso está realmente nas pessoas em volta, ou se essa cobrança vem de você.
- Nunca pensei nisso desse jeito. Pode ser. Sei lá.
- Se você dá toda essa importância pra isso, acaba se tornando uma pressão insuportável. É viver pelos olhos dos outros e não viver a sua vida por você.
- Isso me toma muita energia e tempo.
- Então tente prestar menos atenção nisso. Tente pensar naquilo que você realmente quer ser.
- Acho que a gente está sempre querendo que as pessoas achem a gente bacana.
- Em resumo: você quer ser aceita pelas pessoas.
- É. É isso. Desde criança eu sempre fiquei meio de lado. Acho que até hoje eu inconscientemente fico procurando ser aceita pelo grupo.
- Mas se você tenta ser uma Beth que você não é, quem vai ser aceita não será você de verdade, não é?
- É. Tá certo.
- Então, vale a pena todo esse esforço?
- Não mesmo.
- Então deixe tudo isso para lá.
- Mandar tudo por alto?
- Isso mesmo.
- Grande idéia. Mas eu consigo?
- Tente. No começo você vai conseguir algumas vezes e, outras, não. Mas se você se esforçar, logo vai se sentir bem mais livre desse peso.
- É. Vou tentar. Acho que eu não consigo ser desencanada assim. Mas só de pensar já meu deu uma alegria danada: mandar tudo à zorra. Muito bom.
- Então eu vou indo.
- Já? Assim? Bom. Você pelo menos se despede. O João nem ao menos... É não esperou eu terminar. Foi embora. Mas, como ela disse: mandar tudo à merda. Muito bom. Que alívio que isso dá!

(Continua na série de posts “INVENTÁRIOS”)

domingo, 18 de maio de 2008

IMPERMANÊNCIAS 33


Luz Invisível




Capítulo I - O Vermelho

O Senhor deu, o Senhor tirou; bendito seja o nome do Senhor.
Livro de Jó 1:21


De tão branco o vestido da menina cegava os pássaros e os derrubava na manhã de sol. A irmã mais velha, menos brilhante, segurava seu pulso com a mão úmida, pele ainda amolecida da louça lavada do café. O pai ia na frente, terno ambulante de domingo, boticário longe das suas prateleiras e vidraças.
A missa das nove reunia toda a paróquia e as famílias vinham de longe, estrada de pó, para ouvir o sermão em latim com sotaque polaco. Vinha gente até da Colônia do Pilarzinho e das proximidades do rio Barigui.
– Mirka, Danuta – chamava o pai, quando as duas meninas paravam para olhar alguma flor ou bicho no canto da estrada. Danuta puxava a irmãzinha pelo braço e corria a responder o chamado.
Desde que a mãe morrera no parto da mais nova, o pai se tornara calado e distante. Triste em seu terno velho. Os olhos apagados de brilho por trás das grossas lentes dos óculos. Muita leitura fizera sua vista miúda, muita dor levara toda a sua vontade de ver o mundo. Não fosse pelas duas mocinhas, Danuta hoje com vinte e três anos e Mirka com treze, teria vagado pelo mundo, porta afora, cego de vez.
De quando em quando, Mirka desvencilhava o pulso dos dedos da irmã e corria atrás de alguma borboleta. O pai impacientava-se, mas não gritava com a menina, apenas chamava pelo nome que fora de sua avó.
Que dê aquele jovem impetuoso que de tudo fazia uma guerra santa? Que dê a força no negro dos cabelos e no amarelo dos olhos? Que dê a paixão pela vida e o sangue poderoso encharcando seus músculos?
Agora era só silêncio e as tardes intermináveis na botica. No domingo, a missa pela manhã, e depois o almoço, comendo carne de porco e pierogui e bebendo cerveja e gasosa de framboesa.
Ainda bem que as duas filhas o mantinham vivo. Ainda bem que a vida continuava por si mesma, sem que ninguém precisasse mandar.


(Este é o primeiro capítulo do romance inédito "Luz Invisível", que se passa nos arredores de Curitiba, no final do Século XIX)

sexta-feira, 16 de maio de 2008

IMPERTINÊNCIAS 33


Poema 7

Pablo Neruda

Inclinado en las tardes tiro mis tristes redes
a tus ojos oceánicos.

Allí se estira y arde en la más alta hoguera
mi soledad que da vueltas los brazos como un náufrago.

Hago rojas señales sobre tus ojos ausentes
que olean como el mar a la orilla de un faro.

Sólo guardas tinieblas, hembra distante y mía,
de tu mirada emerge a veces la costa del espanto.

Inclinado en las tardes echo mis tristes redes
a ese mar que sacude tus ojos oceánicos.

Los pájaros nocturnos picotean las primeras estrellas
que centellean como mi alma cuando te amo.

Galopa la noche en su yegua sombría
desparramando espigas azules sobre el campo.

Do livro "Veinte Poemas de Amor y Una Cancíon Desesperada"

terça-feira, 13 de maio de 2008

INVENTÁRIOS 32


Persona 1




(Continuação da série de posts "INVENTÁRIOS)

Beth sentia alguma dificuldade para dormir naquelas noites. Estava para se mudar para a casa de Ismael e isso a deixava um pouco ansiosa. Apesar da relação profunda que os dois haviam desenvolvido nos últimos meses, achava aquela decisão era importante demais para ser tomada em tão pouco tempo. Na verdade - ela mesma admitia - tinha muito medo.
Numa dessas noites, pediu novamente a ajuda do "bibliotecário" João, o homem estranho que lhe aparecia como se fosse um sonho e trazia respostas para as suas perguntas. Sentada em sua cama, bastou Beth pensar na pergunta e chamá-lo, que mais uma vez ele apareceu.

- João?

- Estou aqui.

- Você é sempre muito rápido.

- Sim, se você tiver a pergunta bem definida.

- Tenho sim. Mas, antes dela, quero fazer uma pergunta da minha curiosidade. Posso?

- Pode.

- Essa é a sua imagem mesmo? Você é assim porque aparece assim pra mim, porque eu interpreto desse jeito? Afinal, você poder ser de outro jeito? Uma mulher, por exemplo?

- Esta é apenas uma das formas em que eu posso aparecer, mas se você quiser, pode me ver como mulher. Quer?

- Quero sim.

O homem moreno de terno, chapéu e sapato brancos transformou-se, de repente, numa mulher de cabelos pretos compridos, usando um vestido vermelho, que Beth considerou bastante espalhafatoso.

- Nossa - exclamou Beth.

- Senti uma ironia no seu olhar e na sua observação - disse a mulher com uma voz macia e um sotaque um pouco arrastado.

- Não é nada, não. Foi só a mudança.

- De qualquer forma, fico feliz que você tenha perdido o medo, mas espero que não perca o respeito. Não é recomendado para você.

- Não, não. De jeito nenhum. Mas e agora? Não posso mais chamar você de João. Como eu chamo você?

- Bárbara!

- Pronto. Gostei.

- E a sua pergunta?

- Eu sei que eu já perguntei uma coisa parecida, mas é que essa coisa não tá ainda bem clara pra mim. E é bem importante.

- Se é importante pra você, é importante pra mim também. Diga.

- Eu queria saber se a gente nasce como se fosse um recipiente vazio e depois a vida vai enchendo, ou se a gente já vem com muita coisa dentro.

- Você não é um recipiente vazio. Mesmo quando nasce.

- Mas parece que tudo vem do mundo de fora pra dentro. Que vai enchendo a gente com as experiências e a gente vai se tornando o que o mundo nos torna. Não é?

- As experiências são muito mais o que você interpreta delas do que propriamente uma coisa já pronta. Tudo depende de como você assimila, como você guarda elas dentro de você, ou seja, o que você faz com elas.

- Mas e essa chuva de informações o tempo todo bombardeando a gente? A cultura, a moda, a política, todas essas coisas, o que isso faz com a cabeça da gente? Isso muda o nosso jeito? Se não, como a gente evolui como pessoa?

- Vocês estão sempre buscando uma referência. Procurando uma certeza vinda fora. Isso é próprio da sua condição. Não é novo. O homem das cavernas também procurava vestir colares com garras ou dentes de animais, o que para ele significava assumir a força deles. É a mesma coisa quando alguém vai comprar uma roupa que determinada personalidade usa. Essa pessoa se identifica com a celebridade. A idéia é transferir para si algumas das qualidades dessa pessoa, mostrar que está por dentro da moda, que é legal, moderno ou qualquer coisa assim. É uma espécie de fetichismo.

(Continua na série de posts "INVENTÁRIOS)

segunda-feira, 12 de maio de 2008

IMPERMANÊNCIAS 32


O Meu Olhar



Alberto Caeiro

O meu olhar é nítido como um girassol
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender ...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...

Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)

domingo, 11 de maio de 2008

IMPERTINÊNCIAS 32

Dilemas de consciência


Até o surgimento dos códigos de conduta da religião judaica, não existiam noções teóricas de certo e errado absolutas no Ocidente. Tudo era relativizado pelas circunstâncias, pelas relações com o poder, pela situação social, pela “vontade dos deuses”. Um crime não era um crime contra o outro, mas contra os deuses e isso atraía a ira desta ou daquela divindade, embora pudesse ser simultaneamente bem aceito por outra.

O código moral que criou a linha de conduta do judaísmo, do cristianismo e do islamismo começou também mais preocupado com a ira divina do que com o bem do outro. Mas, aos poucos, ganhou um foco diferente. Dos Dez Mandamentos, os quatro primeiros referem-se à relação do homem com a divindade e os seguintes falam de atos cometidos contra o “próximo”, transformando-se em regras de conduta necessárias para que seja possível o convívio social.

O filme O Sonho de Cassandra (Cassandra´s Dream), de Woody Allen, mostra dois irmãos com temperamentos bem diferentes se defrontando com o mesmo ato cometido. Cada um interpreta e vive de forma diferente essa experiência. Enquanto um é mais racional e pragmático, convencendo-se de que fez aquilo que deveria ter sido feito e as conseqüências são positivas (os fins justificam os meios), o segundo, mais emocional, afunda-se num dilema de culpa e autopunição, martirizando-se no remorso.

A construção de Woody Allen, que faz os personagens atingirem o mesmo ponto e, depois, aos poucos, irem seguindo seus caminhos diferentes, é muito interessante e bastante realista. Nos permite a leitura de que os irmãos sejam uma metáfora do próprio ser humano, com dois lados se digladiando internamente num processo de auto-julgamento contínuo.


Por um lado, quando nos colocamos como referência de mundo, a vida segue e é preciso pensar pragmaticamente naquilo que queremos e precisamos. De outro, quando temos pontos de referência externos em que nos apoiamos - as pessoas à nossa volta, a cultura universal ou a possibilidade de uma divindade maior - temos que responder pelos nossos atos.
De qualquer forma, é uma grande filme. Colin Farrel e Ewan McGregor estão muito bem. E Woody Allen continua sendo um mestre.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

INVENTÁRIOS 31


ÁGUAS PROFUNDAS




(Continuação da série de posts "INVENTÁRIOS")

Beth estava sentada num bar com sua amiga Cíntia. Precisava conversar sobre as coisas que lhe passavam pela cabeça. Estava angustiada e com medo, embora, ao mesmo tempo, sentisse uma grande excitação.

- Tudo isso é muito estranho pra mim, Cíntia. Ainda não sei o que eu vou responder.

- Faz quanto tempo que vocês tão namorando?

- Quase cinco meses.

- E você gosta dele?

- Gosto. Muito.

- Então, qual é o problema?

- Não sei. Morar junto é uma coisa nova pra mim. Não sei se vai dar certo. Não sei se eu tenho estrutura. Não sei se Ismael é maduro o suficiente pra isso. Não sei se eu sou...

- Você tem medo de abrir mão da sua privacidade?

- Não, não é isso. Eu tenho medo de não dar certo, de falhar, sei lá...

- Ele morava até pouco tempo com os pais, né?

- É. E fui eu que incentivei ele a sair de casa, a alugar aquela casa no village. E agora ele quer que vá pra lá.

- Mas vocês dois passam o final de semana inteiro juntos lá. Você vai na sexta à noite e só sai na segunda de manhã. Já sabe mais ou menos como é. E vocês também já viajaram juntos.

- Pois é. Não sei...

- Do que é que você tem medo realmente?

- Medo. Acho que não é medo, não. Acho que eu tô é apavorada.

- Mas por que?

- É que as coisas nunca deram certo pra mim nesse lado da emoção, sabe? De algum jeito, as coisas sempre dão errado. Eu tive uns namorados bem tranqueiras. E nas vezes em que eu gostei muito de alguém, alguma coisa de ruim aconteceu com ela.

- Se alguma coisa deu errado antes, não significa que vai dar errado de novo...

- Não sei, não sei, não sei - repetiu Beth nervosa.

- Acho que você está exagerando. Se não der certo, você volta pro apartamento.

- E se ele deixar de gostar de mim. Se ele descobre que eu não sou legal e que ele não gosta mesmo de mim?

- Se isso é verdade, não faz diferença se vocês tão morando juntos ou não, ele acaba descobrindo de qualquer jeito.

- É?

- É.

- Isso não ajuda muito...

- Bom, acho que você tá nervosa demais. Acho que ele gosta muito de você e você dele. E vai dar certo. Pelo tempo que tiver que ser, vai dar certo.

- Não sei, não sei, não sei - repetiu mais uma vez Beth, começando a roer as unhas.

- Olha só: para com isso. Ele é um cara legal. Vai dar tudo certo. Mesmo.

- Você acha?

- Acho.

- Por que as coisas são tão complicadas assim?

- Não são?

- Não são mesmo. Você é que tá fazendo ficar complicado.

- Mesmo?

- Mesmo. Se você não tentar, não vai saber se daria certo. Se for pra dar errado, vai dar errado agora ou mais tarde. No fundo, você não tem nada a perder. Só a ganhar.

- É verdade.

- É.

- Eu gosto muito do Ismael.

- Pronto.

- E ele gosta de mim. E a gente se dá tão bem. Em tudo: nas nossas idéias, no nosso jeito, na cama, nas coisas que a gente gosta...

- Viu? É isso mesmo.

- Acho que eu nunca ia me perdoar se eu não tentasse.

- Isso mesmo.

- É, acho que é isso mesmo.

- Tá convencida?

- Acho que sim.

- Que bom.

- É. E agora é respirar fundo.

- É. E vê se pede mais uma cerveja. Vamos ver se você se acalma. E para de roer a unha, tá?

- Tá certo. Eu vou tentar...

(Continua na série de posts "INVENTÁRIOS")

domingo, 4 de maio de 2008

IMPERMANÊNCIAS 31


Insaciabilidade

De quase tudo,
Um pouco

De tudo,
Um quase pouco

De um pouco,
Quase tudo

sábado, 3 de maio de 2008

IMPERTINÊNCIAS 31



Fala-nos do Amor

Khalil Gibran






"Al-Mithra disse-lhe então: Fala-nos do amor.

E ele virou a cabeça e fitou o povo e sobre todos se abateu um grande silêncio. E, com voz grave, disse...

Quando o amor vos chamar, segui-o, mesmo que os seus caminhos sejam íngremes e penosos.

E quando as suas asas vos envolverem, entregai-vos a ele, ainda que a espada dissimulada nas suas penas vos possa ferir.

E quando ele vos falar, crede nele, embora a sua voz possa estilhaçar os vossos sonhos como o vento do norte devasta o jardim.

Pois assim como o amor vos coroa, também vos crucifica. E, tal como serve para o vosso crescimento, também serve para a vossa decadência.

E como ele se ergue até às vossas copas e acaricia os vossos mais tenros ramos que esvoaçam ao sol, também às vossas raízes ele desce e as sacudirá no seu apego à terra.

Quais feixes de trigo, ele vos reúne em si.

Vos amanha para vos pôr a nu.

Vos ciranda para vos libertar do vosso farelo.

Vos moi até à alvura.

Vos amassa até vos tornardes macios.

E, depois, vos entrega ao seu fogo sagrado, para vos tornardes pão sagrado para o festim sagrado de Deus.

O amor fará todas essas coisas de vós, para que possais conhecer os segredos do vosso coração e vos tornardes, através desse mesmo conhecimento, um fragmento do coração da vida.

Mas se, no vosso temor, procurardes no amor apenas paz e prazer, faríeis melhor se ocultásseis a vossa nudez e saísseis do amor, para o mundo sem razão, onde rireis, mas não com todo o vosso riso, e chorareis, mas não com todas as vossas lágrimas.

O amor dá-se apenas a si mesmo e nada recebe se não de si próprio.

O amor não possui nem quer ser possuído.

Porque o amor se basta do amor.

Quando amardes, não deveis dizer: "Deus está no meu coração", mas antes "Estou no coração de Deus".

E não penseis que sois vós quem orienta o rumo do amor, pois, se vos achar dignos, será o amor que conduzirá o vosso caminho.

O amor não tem outro desejo que não realizar-se a si mesmo.

Mas se amardes e sentirdes desejos, que sejam estes os vossos desejos: Dissolver-se e ser-se como um regato que desliza e canta à noite a sua melodia.

De tanta ternura conhecer a dor, ser ferido pela vossa própria concepção do amor e sangrar de boa vontade e com júbilo.

Acordar para o amor com um coração alado e dar graças por um outro dia de amor;

e fazer uma pausa à hora do meio dia e meditar sobre o êxtase do amor; regressar à noite ao lar com gratidão; e adormecer com uma oração no coração pelo amado, e nos lábios um hino de louvor.



Kahlil Gibran, em "O Profeta"

quinta-feira, 1 de maio de 2008

INVENTÁRIOS 30


Chama

(Continuação da série de posts "INVENTÁRIOS")

Carta de Beth a Ismael

Querido Ismael,

Escrevo a você porque talvez ninguém saiba tanto o quão próximo do céu o inferno pode estar, e que a dor e delícia podem conviver lado a lado quando ousamos desafiar os limites da alma.


Amar, assim como crescer, assim como enxergar a luz, às vezes dói.

E, embora se queira o bem, pode-se fazer o mal involuntariamente.

E, embora sejamos amados, também podemos ser feridos dessa forma.

Porque assim como a água, que é símbolo da vida, pode nos afogar, o amor também pode se tornar perigoso em quantidades e circunstâncias erradas.

E há momentos em que o mais afetuoso dos carinhos pode machucar e o mais zeloso dos cuidados pode ter o gosto amargo da tirania.

Nessas horas, precisamos de ar.

Pra que a chama não se apague.

Beijos, muitos,

Beth

(Continuação da série de posts "INVENTÁRIOS")