Music Swims Back to Me
(Anne Sexton)
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Tudo sobre as outras coisas e mais um pouco a respeito de jornalismo, literatura, filosofia, poesia, culinária, música, cinema, esoterismo e outras elocubrações condimentadas.
(Continuação da série de posts “IRIDESCÊNCIAS”)
Pepita Gonzales caminhou pelas estradas fugindo de sua própria imagem durante dias. Quando passava por alguma pequena cidade, evitava as vitrines onde, muitas vezes, o vidro refletia seu rosto e seu corpo. Estava triste, se sentia só, faminta, gorda e com a sobrancelha malfeita.
Só se sentiu melhor quando parou em frente aos enormes portões do Spa Beleza Beautifull, com seus jardins cheios de flores e atendentes cheias de sorrisos. Ali, pensou Pepita, poderia se tornar uma pessoa digna de ser olhada. Poderia tirar novas fotos e espalhá-las pela internet nos seus perfis de Orkut, My Space, Flickr, Facebook, Twitter, Crapshook e muito mais.
A grã-esteticista do Spa Beleza Beatifull, Donana Marzipan, era uma mulher ocupada, mas abriu um pequeno espaço em sua agenda Hello Kitty para receber Pepita.
- O mais importante é a beleza interior – observou Donana, lixando a pontinha da unha do dedo indicador que lhe pinicava cada vez que ela coçava o ouvido.
- É mesmo? – duvidou Pepita.
- Mas como ninguém enxerga mesmo dentro de você, a não ser o operador de raio-x, vamos fazer alguma coisa para melhorar esse visual.
- O quê, o quê?
- Alinhamento de silicone, botox retrofacial, peeling ornamental, buço permanente, chapinha balinesa e depilação ergométrica.
- Uau – suspirou a moça, já se imaginando toda repaginada.
(Continua na série de posts “IRIDESCÊNCIAS”)
Fechado em sua concha áspera, mas sem nunca deixar de ouvir o rugido do mar revolto lá fora, Antonio prosseguia seu trabalho no casarão. Fazia suas refeições em separado. Muitas vezes, até, fechado em seu quarto, conversando apenas com Laura, quando queria algo da casa, e com Augusto, nas horas de trabalho. Nestes dias não via Letícia, nem Theodoro, nem Arthur, numa vida quase monástica.
Lia muito. Levava os jornais para o quarto à noite e pegava muitos livros da imensa biblioteca de Augusto Orsini. Mas fugia de temas que o fizessem pensar demais. Gostava de biografias antigas e livros de história, fazendo do passado antigo a maior parte do seu presente.
O inverno de Curitiba era frio e seco, com belas manhãs de sol. Nos finais de semana, saía a caminhar pela cidade. Andava um pouco de bonde. Via centenas de rostos diferentes. Eram pessoas que viviam e quantas - ele pensava - não estavam mortas e enterradas como ele. Quantas haviam escolhido, como ele, aquele caminho. E quantas, também como ele, não haviam sido levadas a isto pela vida.
Mas a maior parte das pessoas parecia feliz e, portanto, não sentia a mesma dor incômoda. Que tipo de droga anestésica milagrosa - pensava - poderia fazer isso? Será que havia alguma forma de apagar isso, como quem apaga um lampião de gás. Seria conformismo? Será que todos já sabiam mesmo que a vida era apenas uma dor transmitida de geração em geração, ou ele era o único no mundo a se sentir daquele jeito?
Parou em frente à banca de jornal e leu algumas manchetes. Havia muita desgraça e nenhuma notícia que pudesse considerar boa. Pensou que havia gente com muito mais problemas e dor do que ele. Havia morte, doenças, miséria, guerra, violência e o roubo deslavado da política. Havia desencontros, filhos que perdem os pais, amores que se separam, fortunas que se dissolvem da noite para o dia, desgraças de todo o tipo. Havia fome, medo, desesperança e solidão. Mas não havia ninguém que sentisse o que ele sentia. Não havia ninguém que se sentisse tão inútil e tão perdido em sua própria vida. Pelo menos era o que os jornais diziam.
(trecho do romance inédito "O Castelo da Não Existência")
Smoke on the water
(Continuação da série de posts “IRIDESCÊNCIAS”)
O jovem multimilionário Alberto Royal, seguindo seu caminho de peregrinação em busca da parte de sua alma que misteriosamente sumira, chegou, certo dia, à cidade de Nova Lanufla. Tinha ouvido falar do famoso guru Salib Babaji-Uhh e seus poderes de transubstanciação, obnubilação e comiseração iluminista.
Alberto Royal esperou, fleumático, que a longa fila de pobres diabos à sua frente se esgotasse. Não havia comido nada nos últimos dois dias porque o caviar que trouxera na mala não lhe parecia estar na temperatura adequada. Mas agüentava firme.
Depois de três dias, entrou no “asram” do guru e prostrou-se:
- Oh, mestre, tenho em minhas ricas contas bancárias bilhões de rúfios, mas um pedaço da minha alma se foi. O que faço?
- Meu filho. O guru tudo vê. Há um caminho para a sua salvação. Mas não é fácil. Você está disposto? – perguntou o ancião coçando a barba com a ponta do rolex.
- Sim, mestre.
- Você precisa se livrar do peso terível que o oprime. De todo esse dinheiro amaldiçoado. Dessa energia negativa.
- O que faço? - perguntou, Alberto Royal, com lágrimas brilhantes correndo por seus olhos cor de ouro
- Doe aos necessitados. A Fundação Anopheles Babaji-Uh-Hu cuidará do problema para você. Basta assinar este documento transferindo todos seus bens para nós.
- E então?
- Sua alma estará plena novamente, meu filho.
(Continua na série de posts “IRIDESCÊNCIAS”)
Vem,
Te direi em segredo
Aonde leva esta dança.
Vê como as partículas do ar
E os grãos de areia do deserto
Giram desnorteados.
Cada átomo
Feliz ou miserável,
Gira apaixonado
Em torno do sol.
Flores envenenadas na jarra. Roxas azuis, encarnadas, atapetam o ar. Que riqueza de hospital. Nunca vi mais belas e mais perigosas. É assim então o teu segredo. Teu segredo é tão parecido contigo que nada me revela além do que já sei. E sei tão pouco como se o teu enigma fosse eu. Assim como tu és o meu.
See me, feel me...
(Continuação da série de posts “IRIDESCÊNCIAS”)
Depois de muito andar em sua peregrinação, Billy-Bobby, o Homem Invisível, chegou à Tubesville, a cidade com o maior número de televisores e revistas de fofoca em todo o mundo. Na entrada da cidade, viu um out-door anunciando os serviços do mega-consultor de imagem e marketing-espetacular-pessoal Carter Stonewater.
- Eu posso fazer você aparecer!! – dizia o cartaz. E Billy-Bobby achou que finalmente alguém poderia ajudá-lo a se curar da invisibilidade.
O personal image trainer recebeu Billy-Bobby em seu escritório:
- Sim. Nós podemos. Nós podemos melhorar a sua imagem, fazê-la ganhar musculatura, personalidade e sex-appeal. Temos frascos de frases feitas, caixas de estilos impactantes, pílulas de poses enigmáticas e pacotes e mais pacotes de expressões faciais inesquecíveis.
Billy-Bobby encheu-se de esperanças. Passou a contar ao especialista sobre todas as suas desaparecências e insignificâncias. Lembrou dos esforços para se tornar visível, colocando piercings, fazendo tatuagens, pintando o cabelo de fúcsia-escuro, comprando roupas da moda, arranjando um bronzeado incontestável, óculos escuros de griffe, operação plástica no nariz, hálito puro e o carro mais potente do mercado.
- Tudo isso vai mudar – profetizou Carter Stonewater.
- Mudar – repetiu Billy-Bobby batendo palmas – mudar...
(Continua na série de posts “IRIDESCÊNCIAS”)
(Continuação da série de posts “IRIDESCÊNCIAS”)
Na grande megápole de Bizarrisburgo, vivia Alberto Royal, jovem herdeiro, magnata, dândi e gentleman de primeira linha. Certo dia, Alberto Royal acordou estranho. Sentiu que faltava algo. Abriu todos os 449 cofres de sua mansão de 800 opulentos quartos e 647 opulentos banheiros. Chamou seus 1.295 empregados e fez com eles uma completa varredura em todos os possíveis lugares de sua imensa propriedade.
Verificou que tudo estava em seu lugar. Nada faltava em seus amontoados astronômicos de riqueza quase incomensurável. Dormiu de novo e, pela manhã, mais uma vez, acordou sentindo que lhe faltava algo. Chamou seus consultores, seus médicos, modistas e alfaiates. Procurou corretores, analistas, vendedores, contadores, calculistas e banqueiros, mas ninguém – repito - ninguém, encontrou nada que lhe faltasse.
E, assim, com elegância e estoicismo, o empertigado jovem Alberto Royal deitou-se para dormir na terceira noite. Depois de um sono agitado, acordou pasmo e suado em seu leito de sedas e pedras preciosas. Descobrira o mistério: faltava-lhe um pedaço da alma. Como havia ido, quem o tinha levado e para qual paradeiro, não havia qualquer pista.
E como ele sabia que ninguém ali poderia ajudá-lo, partiu pelo mundo numa longa, nobre e valiosa jornada em busca da parte de sua alma que faltava.
(Continua na série de posts “IRIDESCÊNCIAS”)
Bips
(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
Cheiro de palha molhada. Cocô de cavalo. Suor. Pipoca. Roupa mofada. Algodão doce.
Lúcia assiste, um a um, todos os números do circo que antecedem o do atirador de facas.
Angústia. Malha apertada. Respiração curta. Coração acelerado. Vontade de fugir. Excitação.
Ela sente uma mistura de emoções que vão da alegria histérica ao início de um pânico profundo.
Palhaços. Risos. Contorcionistas. Aplausos. Bailarinas. Suspiros. Malabaristas. Apupos.
O anão Golia, com voz poderosa, anuncia o aterrorizante número de Dorival, O Atirador de Facas.
Lúcia ouve um bip distante e sente que chegou a hora de resolver tudo de uma vez por todas.
- É agora – pensa, seguindo Dorival ao picadeiro – o momento que eu mais temi e mais quis
(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
Ventos
(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
Tarô de Crowley. Velha Aurora pede a Lúcia. Ela tira uma carta. Baralho velho e viscoso. Luz de velas.
A carta tem o número 10. Lâminas entrelaçadas.
- Dez de espadas – exclama Lúcia.
- Ruína – diz a voz rouca da Velha. Olhos vazios. As sobrancelhas gritam.
- Ruína? – pergunta Lúcia. Ela ouve um barulho. Espécie de “bip”. Longe.
- A carta é o rei da ruína. Desesperança, perda, dor.
- Mas...
- Naipe de espadas é elemento ar, pensamento, razão, consciência. Respiro e sopro. Nascimento e morte. A décima casa é o fim de uma viagem.
- Não tem saída para mim, então?
- Essa é a saída. Tudo vai ruindo. E cai também a prisão que você construiu para se guardar. Cercada de espadas. Idéias afiadas que cortam você. Não lute contra elas. Isso só machuca.
- Como?
- Deixe o medo vir – riu a bruxa estridente.
- Mas eu não dou conta.
- Eeeechhhhh – gritou a Velha Aurora – use a espada.
(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
Números
(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
Lúcia dormiu e sonhou enquanto todas as luzes do circo pareciam acesas lá fora e todas as possibilidades de contato impossíveis para ela e para o mundo inteiro e nada nada nada nada nada nada poderia ser feito ou dito ou pensado ou tentado ou ignorado ou omitido ou achado ou perdido que pudesse aliviar aquele sentimento de derrota e de falência e de perda e de incapacidade e de insatisfação e de insuficiência e de falta e de ausência e de total fraqueza diante do desafio que era vencer seus próprios medos e encarar de frente todos os riscos que a vida lhe propunha no que dizia respeito à paixão e ao desejo e ao amor sendo que isso ganhava tanto mais força quanto maior era essa paixão e esse desejo e esse amor e ela sentia que o tempo passava e as dores em seu ventre se acendiam em brasa quanto mais próxima ela estava de Dorival e aquilo a devorava por dentro e iniciava um processo interno de discussão contínuo dela consigo mesma onde cada lado defendia um ponto de vista e ela sofria com essa briga que a ia partindo em duas como se outra faca a cortasse devagar e dolorosamente e a fizesse lembrar mais uma vez do que lhe tinha acontecido antes de se juntar ao circo e a fazia maldizer cada momento ruim que havia passado na época e a fazia rogar ao universo que levasse embora aquelas memórias e também a fazia perguntar-se porque ela e porque aquilo e porque tanto e se isso nunca mais acabaria e se ela viveria assim até o fim de sua vida limpando o chão do picadeiro do circo e ouvindo aplausos e risadas e sem saber o que seria subir no palco e executar aquele que seria o seu próprio número dentro do grande espetáculo...
(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
Fogueiras
(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)
Noite de São João. Depois do espetáculo. O circo dança. É festa.
Os músicos tocam. Helvécio, rapaz tatuado que ergue lonas, canta. Voz suave. Vicente Celestino.
Dançam as bailarinas gêmeas Luna e Stela. Dançam os três palhaços Primeiro, Segundo e Terceiro. Diana, a mulher barbada, dança com Santelmo, o equilibrista. O Grande Abelardo dança com sua nova assistente Olívia. O domador de leões Rigoberto dança com o chimpanzé Lolô. E todos dançam com Lúcia. Que dança. Só.
Dorival, o atirador de facas, procura Lúcia com os olhos. Ela tenta dançar com eles para longe. Seus pés lhe traem. Os olhos se encontram. E falam. E dançam juntos.
Atrás da barraca de tiro ao alvo. Beijo. Música de realejo. Fogos de artifício. Macio. Molhado. Quente. Doce.
Tão perto. Encaixe perfeito. Lúcia não quer que acabe nunca mais. É tarde.
Tarde?
(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)