terça-feira, 30 de dezembro de 2008

IMPERMANÊNCIAS 64


Music Swims Back to Me

(Anne Sexton)



...

Imagine it. A radio playing
and everyone here was crazy.
I liked it and danced in a circle.
Music pours over the sense
and in a funny way
music sees more than I.
I mean it remembers better;
remembers the first night here.
It was the strangled cold of November;
even the stars were strapped in the sky
and that moon too bright
forking through the bars to stick me
with a singing in the head.
I have forgotten all the rest.

...

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

IMPERTINÊNCIAS 63


Navalha de Ockham




"The main thing that I learned about conspiracy theory is that conspiracy theorists actually believe in a conspiracy because that is more comforting. The truth of the world is that it is chaotic. The truth is, that it is not the Jewish banking conspiracy or the grey aliens or the 12 foot reptiloids from another dimension that are in control. The truth is more frightening, nobody is in control. The world is rudderless."

(Alan Moore)

domingo, 28 de dezembro de 2008

sábado, 27 de dezembro de 2008

IRIDESCÊNCIAS 6


El dia que me queira



(Continuação da série de posts “IRIDESCÊNCIAS”)


Pepita Gonzales caminhou pelas estradas fugindo de sua própria imagem durante dias. Quando passava por alguma pequena cidade, evitava as vitrines onde, muitas vezes, o vidro refletia seu rosto e seu corpo. Estava triste, se sentia só, faminta, gorda e com a sobrancelha malfeita.

Só se sentiu melhor quando parou em frente aos enormes portões do Spa Beleza Beautifull, com seus jardins cheios de flores e atendentes cheias de sorrisos. Ali, pensou Pepita, poderia se tornar uma pessoa digna de ser olhada. Poderia tirar novas fotos e espalhá-las pela internet nos seus perfis de Orkut, My Space, Flickr, Facebook, Twitter, Crapshook e muito mais.

A grã-esteticista do Spa Beleza Beatifull, Donana Marzipan, era uma mulher ocupada, mas abriu um pequeno espaço em sua agenda Hello Kitty para receber Pepita.

- O mais importante é a beleza interior – observou Donana, lixando a pontinha da unha do dedo indicador que lhe pinicava cada vez que ela coçava o ouvido.

- É mesmo? – duvidou Pepita.

- Mas como ninguém enxerga mesmo dentro de você, a não ser o operador de raio-x, vamos fazer alguma coisa para melhorar esse visual.

- O quê, o quê?

- Alinhamento de silicone, botox retrofacial, peeling ornamental, buço permanente, chapinha balinesa e depilação ergométrica.

- Uau – suspirou a moça, já se imaginando toda repaginada.


(Continua na série de posts “IRIDESCÊNCIAS”)


sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

IMPERMANÊNCIAS 63


Os olhos



"Quem luta contra monstros deve velar para que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. E, se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olhará para dentro de ti"

(Nietzsche)

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

IMPERTINÊNCIAS 62


Interiores



Fechado em sua concha áspera, mas sem nunca deixar de ouvir o rugido do mar revolto lá fora, Antonio prosseguia seu trabalho no casarão. Fazia suas refeições em separado. Muitas vezes, até, fechado em seu quarto, conversando apenas com Laura, quando queria algo da casa, e com Augusto, nas horas de trabalho. Nestes dias não via Letícia, nem Theodoro, nem Arthur, numa vida quase monástica.


Lia muito. Levava os jornais para o quarto à noite e pegava muitos livros da imensa biblioteca de Augusto Orsini. Mas fugia de temas que o fizessem pensar demais. Gostava de biografias antigas e livros de história, fazendo do passado antigo a maior parte do seu presente.


O inverno de Curitiba era frio e seco, com belas manhãs de sol. Nos finais de semana, saía a caminhar pela cidade. Andava um pouco de bonde. Via centenas de rostos diferentes. Eram pessoas que viviam e quantas - ele pensava - não estavam mortas e enterradas como ele. Quantas haviam escolhido, como ele, aquele caminho. E quantas, também como ele, não haviam sido levadas a isto pela vida.


Mas a maior parte das pessoas parecia feliz e, portanto, não sentia a mesma dor incômoda. Que tipo de droga anestésica milagrosa - pensava - poderia fazer isso? Será que havia alguma forma de apagar isso, como quem apaga um lampião de gás. Seria conformismo? Será que todos já sabiam mesmo que a vida era apenas uma dor transmitida de geração em geração, ou ele era o único no mundo a se sentir daquele jeito?


Parou em frente à banca de jornal e leu algumas manchetes. Havia muita desgraça e nenhuma notícia que pudesse considerar boa. Pensou que havia gente com muito mais problemas e dor do que ele. Havia morte, doenças, miséria, guerra, violência e o roubo deslavado da política. Havia desencontros, filhos que perdem os pais, amores que se separam, fortunas que se dissolvem da noite para o dia, desgraças de todo o tipo. Havia fome, medo, desesperança e solidão. Mas não havia ninguém que sentisse o que ele sentia. Não havia ninguém que se sentisse tão inútil e tão perdido em sua própria vida. Pelo menos era o que os jornais diziam.


(trecho do romance inédito "O Castelo da Não Existência")


quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

IMPERMANÊNCIAS 62


Alma entreaberta




"A alma deveria estar sempre entreaberta,
de tal forma que se o céu a solicitasse,
ele não tivesse que ser obrigado a esperar".
(Emily Dickinson)


...

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

IMPERTINÊNCIAS 61

And so...

So this is Christmas
and what have you done...

(e quando começa a tocar a versão de Simone - Socorro!!!!!!!)

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

IMPERMANÊNCIAS 61


Mundo Pequeno

(Manoel de Barros)



O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter os ocasos

Conheço de palma os dementes de rio.
Fui amigo do Bugre Felisdônio, de Ignácio Rayzama e de Rogaciano.
Todos catavam pregos na beira do rio para enfiar no horizonte.
Um dia encontrei Felisdônio comendo papel nas ruas de Corumbá.
Me disse que as coisas que não existem são mais bonitas.

...

(excerto do poema "Mundo Pequeno" de "O Livro das Ignorãças")

sábado, 20 de dezembro de 2008

IMPERTINÊNCIAS 60



Tudo


Tudo o que há de vago em teu olhar
É o que me afaga

...

IMPERMANÊNCIAS 60


Tudo



O que há de vasto em teu olhar
É que o que me basta

...

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

IRIDESCÊNCIAS 5


Smoke on the water



(Continuação da série de posts “IRIDESCÊNCIAS”)


O jovem multimilionário Alberto Royal, seguindo seu caminho de peregrinação em busca da parte de sua alma que misteriosamente sumira, chegou, certo dia, à cidade de Nova Lanufla. Tinha ouvido falar do famoso guru Salib Babaji-Uhh e seus poderes de transubstanciação, obnubilação e comiseração iluminista.

Alberto Royal esperou, fleumático, que a longa fila de pobres diabos à sua frente se esgotasse. Não havia comido nada nos últimos dois dias porque o caviar que trouxera na mala não lhe parecia estar na temperatura adequada. Mas agüentava firme.

Depois de três dias, entrou no “asram” do guru e prostrou-se:

- Oh, mestre, tenho em minhas ricas contas bancárias bilhões de rúfios, mas um pedaço da minha alma se foi. O que faço?

- Meu filho. O guru tudo vê. Há um caminho para a sua salvação. Mas não é fácil. Você está disposto? – perguntou o ancião coçando a barba com a ponta do rolex.

- Sim, mestre.

- Você precisa se livrar do peso terível que o oprime. De todo esse dinheiro amaldiçoado. Dessa energia negativa.

- O que faço? - perguntou, Alberto Royal, com lágrimas brilhantes correndo por seus olhos cor de ouro

- Doe aos necessitados. A Fundação Anopheles Babaji-Uh-Hu cuidará do problema para você. Basta assinar este documento transferindo todos seus bens para nós.

- E então?

- Sua alma estará plena novamente, meu filho.


(Continua na série de posts “IRIDESCÊNCIAS”)

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

IMPERTINÊNCIAS 59


Hereafter




"Biography lends to death a new terror"
(Oscar Wilde)

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

IMPERMANÊNCIAS 59



Sufi
(Rumi)



Vem,
Te direi em segredo
Aonde leva esta dança.

Vê como as partículas do ar
E os grãos de areia do deserto
Giram desnorteados.

Cada átomo
Feliz ou miserável,
Gira apaixonado
Em torno do sol.

..................................

À noite, pedi a um velho sábio
que me contasse todos os segredos do universo.
Ele murmurou lentamente em meu ouvido:
- Isto não se pode dizer, isto se aprende.


...

sábado, 13 de dezembro de 2008

IMPERTINÊNCIAS 58



Teu Segredo
(Clarice Lispector)





Flores envenenadas na jarra. Roxas azuis, encarnadas, atapetam o ar. Que riqueza de hospital. Nunca vi mais belas e mais perigosas. É assim então o teu segredo. Teu segredo é tão parecido contigo que nada me revela além do que já sei. E sei tão pouco como se o teu enigma fosse eu. Assim como tu és o meu.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

IRIDESCÊNCIAS 4


See me, feel me...



(Continuação da série de posts “IRIDESCÊNCIAS”)


Depois de muito andar em sua peregrinação, Billy-Bobby, o Homem Invisível, chegou à Tubesville, a cidade com o maior número de televisores e revistas de fofoca em todo o mundo. Na entrada da cidade, viu um out-door anunciando os serviços do mega-consultor de imagem e marketing-espetacular-pessoal Carter Stonewater.

- Eu posso fazer você aparecer!! – dizia o cartaz. E Billy-Bobby achou que finalmente alguém poderia ajudá-lo a se curar da invisibilidade.

O personal image trainer recebeu Billy-Bobby em seu escritório:

- Sim. Nós podemos. Nós podemos melhorar a sua imagem, fazê-la ganhar musculatura, personalidade e sex-appeal. Temos frascos de frases feitas, caixas de estilos impactantes, pílulas de poses enigmáticas e pacotes e mais pacotes de expressões faciais inesquecíveis.

Billy-Bobby encheu-se de esperanças. Passou a contar ao especialista sobre todas as suas desaparecências e insignificâncias. Lembrou dos esforços para se tornar visível, colocando piercings, fazendo tatuagens, pintando o cabelo de fúcsia-escuro, comprando roupas da moda, arranjando um bronzeado incontestável, óculos escuros de griffe, operação plástica no nariz, hálito puro e o carro mais potente do mercado.

- Tudo isso vai mudar – profetizou Carter Stonewater.

- Mudar – repetiu Billy-Bobby batendo palmas – mudar...


(Continua na série de posts “IRIDESCÊNCIAS”)

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

IMPERMANÊNCIAS 58



Nutshell



Hamlet:
- O God, I could be bounded in a nutshell, and count myself a
king of infinite space—were it not that I have bad dreams.

(William Shakespeare)


King
...
And you're sick to your stomach
At the sound of your voice
And the shape of your face
And the sound of your name
They send you pictures of yourself
It's someone you don't know
And they call you a genius
Cause you're easier to sell
But the fire in your belly
That gave you the songs
Is suddenly gone
And you feel like a fake
Is that what you want?
...

(Marillion)

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

IRIDESCÊNCIAS 3


Horror ao espelho



(Continuação da série de posts “IRIDESCÊNCIAS”)

O caso de Pepita havia se dado de uma hora para outra. Foi numa tarde de sábado, no salão de beleza de dona Dolores Amparo, em Insolitópolis. Tinha chegado alguns minutos adiantada e sentou-se no sofá para ler revistas de moda e beleza.
Repentinamente, as revistas começaram a se mexer, levantaram da mesinha de centro, quase em fila indiana, e começaram a agredir Pepita. Desejavam soterrá-la - contou, mais tarde, aos incrédulos.
Dúzias de páginas com fotos de modelos, biquínis, penteados, exercícios e receitas para emagrecer vinham em sua direção, fustigando seu rosto e sua auto-estima impiedosamente. Pepita, moça de família, estudante e prendada à procura de um noivo, foi covardemente atacada sem poder se defender da avalanche de fotografias deslumbrantes que esgotavam seus sentidos, sua capacidade de discernimento e sua conta bancária.
Foi encontrada, mais tarde, perambulando pelas ruas sem saber direito o que havia acontecido. Sabia apenas de uma coisa: passara a ter verdadeiro pavor da própria imagem. Olhar-se no espelho e tirar fotografias passaram a ser atividades que lhe provocavam ataques selvagens de pânico e coceira.
Assim, Pepita decidiu partir em busca de uma solução para o seu problema, sem olhar para trás, sem levar espelho, estojo de maquiagem e nem mesmo um batonzinho.

(Continua na série de posts “IRIDESCÊNCIAS”)

domingo, 7 de dezembro de 2008

IRIDESCÊNCIAS 2



Um pedaço da alma



(Continuação da série de posts “IRIDESCÊNCIAS”)

Na grande megápole de Bizarrisburgo, vivia Alberto Royal, jovem herdeiro, magnata, dândi e gentleman de primeira linha. Certo dia, Alberto Royal acordou estranho. Sentiu que faltava algo. Abriu todos os 449 cofres de sua mansão de 800 opulentos quartos e 647 opulentos banheiros. Chamou seus 1.295 empregados e fez com eles uma completa varredura em todos os possíveis lugares de sua imensa propriedade.
Verificou que tudo estava em seu lugar. Nada faltava em seus amontoados astronômicos de riqueza quase incomensurável. Dormiu de novo e, pela manhã, mais uma vez, acordou sentindo que lhe faltava algo. Chamou seus consultores, seus médicos, modistas e alfaiates. Procurou corretores, analistas, vendedores, contadores, calculistas e banqueiros, mas ninguém – repito - ninguém, encontrou nada que lhe faltasse.
E, assim, com elegância e estoicismo, o empertigado jovem Alberto Royal deitou-se para dormir na terceira noite. Depois de um sono agitado, acordou pasmo e suado em seu leito de sedas e pedras preciosas. Descobrira o mistério: faltava-lhe um pedaço da alma. Como havia ido, quem o tinha levado e para qual paradeiro, não havia qualquer pista.
E como ele sabia que ninguém ali poderia ajudá-lo, partiu pelo mundo numa longa, nobre e valiosa jornada em busca da parte de sua alma que faltava.

(Continua na série de posts “IRIDESCÊNCIAS”)

sábado, 6 de dezembro de 2008

IRIDESCÊNCIAS 1



O Homem Invisível


(Primeira parte da série de posts “IRIDESCÊNCIAS”)

Não foi de uma só vez que Billy-Bobby descobriu que era invisível. Tudo aconteceu aos pouquinhos. Era quase ainda um bebê. Um dia, sua mãe não o ouvira. No outro, seu pai passara reto por ele.
E, naquele triste Natal, não ganhara o brinquedo que pedira. Mas, sua irmã, Jenniffer-Lee-Terezinha, recebera a mini-metralhadora que encomendara ao Papai Noel.
Depois veio aquela garota por quem Billy-Bobby era apaixonado na escola: Britney-Lou-Aparecida. Ela, em momento algum, o viu.
E Billy-Bobby foi desaparecendo aos poucos. Aos 35 anos, o problema atingiu o auge. Numa manhã fatídica, ao chegar ao escritório da NSPRC Company & Brothers Association, onde trabalhava, havia outro funcionário ocupando sua mesa. Voltou para casa e encontrou sua mulher, Pamela-Sue-Cremilda, com o marceneiro, na cama.
Ficou arrasado. Pediu ao Senhor Jesus que o ajudasse, mas o gerente da igreja disse que Ele estava muito ocupado naquele momento para atendê-lo (no fundo, Ele também não conseguia ver Billy-Bobby).
Procurou o prefeito de Ghrotesch Town City, o delegado, o deputado, o magistrado, o médico, o jardineiro, o veterinário, o boticário, o psiquiatra, o filósofo e o poeta, mas nenhum deles via cura para o seu caso.
Decidiu, então, sair pelo mundo à procura de algo ou alguém que o curasse dessa invisibilidade.

(Continua na série de posts “IRIDESCÊNCIAS”)

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

IMPERMANÊNCIAS 57


Excesso de Companhia

(Carlos Drummond de Andrade)




Os anjos cercavam Marilda, um de cada lado, porque Marilda ao nascer ganhou dois anjos da guarda.

Em vez de ajudar, atrapalhou. Um anjo queria levar Marilda a festas, o outro à natureza. Brigavam entre si, e a moça não sabia a qual deles obedecer. Queria agradar aos dois, e acabava se indispondo com ambos.

Tocou-os de casa. Ficou sozinha, sem apoio espiritual mas também sem confusão. Os dois vieram procurá-la, arrependidos, pedindo desculpas.

Só aceito um de cada vez. Passa uns tempos comigo, depois mando embora, e o outro fica no lugar. Dois anjos ao mesmo tempo é demais.

Agora Marilda é o anjo da guarda dos seus anjos, um de cada vez.


...

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

IMPERTINÊNCIAS 56


Haicai

(Bashô)




Doente da viagem,
Meus sonhos perambulam
Pelo campo seco


....

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

IMPERTINÊNCIAS 55



A arte e o tempo

(Eduardo Galeano)




Quem são os meus contemporâneos? - pergunta-se Juan Gelman.

Juan diz que às vezes encontra homens que têm cheiro de medo em Buenos Aires, em Paris, ou em qualquer lugar, e sente que estes homens não são seus contemporâneos. Mas existe um chinês que há milhares de anos escreveu um poema sobre um pastor de cabras que está longe, muito longe da mulher amada e, mesmo assim, pode escutar, no meio da noite, no meio da neve, o rumor do pente em seus cabelos; e lendo esse poema remoto, Juan comprova que sim, que eles sim: que esse poeta, esse pastor e essa mulher são seus contemporâneos.


De "O Livro dos Abraços"

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

IRREVERÊNCIAS 1


Xodó e Filó




PS.: Agradecimentos a Flávia Marinho pelos gatinhos e a Glória Galembeck pela frase.

sábado, 29 de novembro de 2008

IMPERMANÊNCIAS 55


The road not taken


(Robert Frost)



Two roads diverged in a yellow wood,
And sorry I could not travel both
And be one traveler, long I stood
And looked down one as far as I could
To where it bent in the undergrowth.

Then took the other, as just as fair,
And having perhaps the better claim,
Because it was grassy and wanted wear;
Though as for that the passing there
Had worn them really about the same.

And both that morning equally lay
In leaves no step had trodden black.
Oh, I kept the first for another day!
Yet knowing how way leads on to way,
I doubted if I should ever come back.

I shall be telling this with a sigh
Somewhere ages and ages hence:
Two roads diverged in a wood, and I--
I took the one less traveled by,
And that has made all the difference.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

INCONSCIÊNCIAS 21


Bips



(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)


Som de rufar de tambores. Metal raspando quando sai da bainha. Depois o zunido no ar. E o barulho seco do aço cravando-se na receptiva madeira.

Lúcia sente a faca entrar na tábua a alguns milímetros da pele do pescoço. Ela ouve um bip distante.

Os pelos da nuca se arrepiam e ela sente uma emoção diferente. Excitante como uma carícia. Como um lábio roçando docemente em seu pescoço nu.

Outra lâmina. Ela se crava ao lado da batata da perna esquerda. Muito perto. Arrepio em todo o corpo.

A mão firme de Dorival solta o aço no ar. Um fio invisível a conduz carinhosamente até ao lado da coxa direita de Lúcia. Bip.

Lúcia sua. Seu corpo passa a esperar languidamente cada um dos punhais que chegam pelo ar. Carinhos delicados.

Há um prazer indescritível em cada vez que a faca entra na madeira a poucos milímetros da sua pele.

Ondas de calor percorrem seu corpo. Bip. Arrepios de cima a abaixo na espinha. Respiração rápida.

Ela sente o punhal entrar na madeira entre o braço e a pele do seio direito. Uma área muito sensível.

Lúcia sente prazer como nunca na vida. A boca fica cheia de saliva e a vagina está quente e molhada. Seus quadris começam a tremer. Bip.

O momento mais grave. Dorival coloca a venda para a última faca. Lúcia sabe que ele ainda enxerga através do pano. Ela nem pensa. O público suspende a respiração.

A faca voa, pássaro selvagem domesticado pelos dedos seguros de Dorival. O aço vibra e canta. O pássaro pousa. A madeira denuncia o golpe.

O metal penetra a uma distância mínima do corpo de Lúcia, bem no meio das pernas. Lúcia estremece com o frenesi do gozo. Ela geme e suspira.

O auditório vai abaixo. Ovação. Aplausos. Gritos. Risos. Bip. Bip. Bip. As luzes giram. Ela vê um clarão.

Lúcia vê o sorriso de Dorival vindo em sua direção. Bip, bip, bip, bip. O clarão aumenta. Ela já não sente o corpo. Bip, bip, bip, bip, bip. O clarão é tanto que não há mais como ficar com os olhos abertos.

Bip, bip, bip, bip, bip, bip, bip, bip, bip, bip. Ela ainda ouve a voz de Dorival dizendo: - Eu amo você. Bip.

Biiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiip...

Os médicos retiram o aparelho de ressuscitação. O coração já não responde mais. Eles lamentam pela perda da mulher jovem que foi covardemente esfaqueada pelo marido.

Na parede, em frente à cama de Lúcia, uma gravura antiga de circo mostra palhaços, bailarinas, malabaristas e outros artistas. No centro da figura, uma jovem de olhos azuis sorri. Bip.


Fim (bip)

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

INCONSCIÊNCIAS 20


Luzes


(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)


Cheiro de palha molhada. Cocô de cavalo. Suor. Pipoca. Roupa mofada. Algodão doce.


Lúcia assiste, um a um, todos os números do circo que antecedem o do atirador de facas.


Angústia. Malha apertada. Respiração curta. Coração acelerado. Vontade de fugir. Excitação.


Ela sente uma mistura de emoções que vão da alegria histérica ao início de um pânico profundo.


Palhaços. Risos. Contorcionistas. Aplausos. Bailarinas. Suspiros. Malabaristas. Apupos.


O anão Golia, com voz poderosa, anuncia o aterrorizante número de Dorival, O Atirador de Facas.


Lúcia ouve um bip distante e sente que chegou a hora de resolver tudo de uma vez por todas.


- É agora – pensa, seguindo Dorival ao picadeiro – o momento que eu mais temi e mais quis


(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)


terça-feira, 25 de novembro de 2008

INTERMEZZO 8


The build up
(Kings of Convenience)


The build up
lasted for days
lasted for weeks,
lasted too long

our hero withdrew,
when there was two
he could not choose one,
so there was none

worn into the vaguely announced

the spinning top made a sound like a train across the valley
fading, oh so quiet but constant 'til it passed
over the ridge into the distances
written on your ticket to remind you where to stop
and when to get off

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

INCONSCIÊNCIAS 19


Ruas



(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)

- Então é assim? – perguntou Dorival.
Lúcia virou-se. Já estava parada ali há algum tempo. Olhava a rua. Fitava o que havia do outro lado.

Juntara suas poucas coisas. Uma pequena sacola. Roupas que ganhara de Diana. Sonhos. Lembranças.

Saíra do trailer. Meio da noite. Silêncio. Frio. Um mundo fechado. Angústia. Não o alívio que pensara.

- Você vai embora assim? Sem se despedir?

Os olhos azuis de Lúcia se apagam. Ela se sente sem forças para atravessar a rua. Mas não consegue ficar.
- Desculpe. Eu não sabia o que dizer - ela ouve um bip distante.
- Mas por que ir embora?
- Eu não consigo... – ela passa a mão pelo ventre.
- Acha que só você tem feridas?
- Você não perdeu a confiança em si mesmo?
- Não. Eu ainda acredito.
- Você não tem medo?
- Tenho. Mas, mesmo assim, vim aqui para pedir que você venha fazer o número comigo.
- Eu não posso.
- Tantas vezes eu morri. E tantas outras vidas eu ainda vou viver além desta. Mas é só nesta que há este circo, este picadeiro, estas facas, este eu e esta você. Também tenho minhas cicatrizes, mas quero viver o que tenho para viver aqui. Com você.
- Pensei em ir embora...
- Lá fora só há ilusão. O único mundo que existe é o circo. Venha comigo - estendeu a mão Dorival.
Lúcia parou um instante. Sentiu-se como o trapezista solto no ar que tem como único destino a mão do companheiro.
Apanhou a sacola. Respirou fundo. Enfrentou as alturas. E deixou para trás o outro lado da rua.

(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)

domingo, 23 de novembro de 2008

INCONSCIÊNCIAS 18



Águas



(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)

Atrás da lona. Lúcia olha. Dorival atira facas. Celeste, a assistente, recebe os golpes à sua volta. Impassível.

As facas voam. Precisas. Desenham o contorno da moça. Cravam-se na taboa. Recortam o mundo à volta dela.

Lúcia treme. Primeiro, o barulho do metal deixando a bainha. Então, zunido no ar. Por fim, som seco na madeira.

Dorival nunca treme. Mão firme como aço de sabre. Olhar direto ao ponto. Nenhum desvio. Nenhuma dúvida.

Celeste confia nele. É sua irmã. Os dois fazem o número desde crianças. Nunca houve um erro. Até ali.

Dispersa. Ela tenta se concentrar. Pensa em Hélio. Marido doente. O cigarro comeu o pulmão. Disse o médico.

Ela faz o que não devia. Distrai-se. Move o corpo para a direita. Alguns centímetros. E a faca penetra o ombro.

Gritos. A luz se apaga por segundos. Acende de novo. Música. Palhaços. Bailarinas. Malabaristas. Cavalos.

Atrás da lona. Lúcia chora. Não presta atenção ao barulho de bip. Teimoso. As lágrimas não são por Celeste.

(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)

sábado, 22 de novembro de 2008

INCONSCIÊNCIAS 17



Pés



(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)

Lúcia pensa. A Velha Aurora lhe deixara confusa. Final de tarde. Pôr-do-sol. Circo movimentado. Artistas se preparam para o espetáculo.

Os três palhaços passam. Sapatos enormes. Engraçados. Lúcia pensa.
- Gosta dos meus sapatos? – pergunta Primeiro.
- Gosta, gosta, gosta? – insiste Segundo.
- Hummhummm!! – afirma Terceiro.
- Só queria saber qual o tamanho dos pés... – diz Lúcia.
- Como assim? - indaga Primeiro, fazendo uma careta esquisita, no que é imediatamente imitado pelos outros dois.
- Ora – tenta explicar Lúcia – só queria saber o quanto sobra da parte do sapato que já não é mais pé.
- Mas tudo aqui é pé – responde Primeiro – desde que somos palhaços.
- É sim, minha querida, é sim – confirma Segundo.
- Hummhummmmmhuhuhummmmmhuhuhuhuhummmmmmmmm – acrescenta Terceiro, que recebe um olhar de reprovação dos outros dois por ser tão óbvio.
- Mas, mas, mas – gagueja Lúcia – se vocês tivessem que cortar a parte do sapato que não é pé, que não é parte de vocês, como vocês fariam para saber?
- Não há como saber. Já é parte do que somos. Se cortarmos, não vamos mais ser nós mesmos – pontua, pausadamente, Primeiro.
- Seremos outras pessoas – prossegue Segundo.
- Hummhum – aponta Terceiro, desta vez mais comedido.
- Mas, mas... – tateia Lúcia pelas palavras.
- Eu serei o presidente Kubitscheck-check-check – caçoa Primeiro.
- E eu, Severina Xique-xique-xique – emenda Segundo.
- Hum – começa Terceiro, mas é interrompido pelos outros dois em uníssono.
- Pssssssssssittttttttt, mas que disparate. Estamos a falar de coisas sérias – berram os palhaços.

Lúcia pensa. Ainda mais confusa. Não ouve direito a discussão dos palhaços. Escuta ao longe, mais uma vez, um som parecido com um bip.

(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

INCONSCIÊNCIAS 16


Ventos



(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)

Tarô de Crowley. Velha Aurora pede a Lúcia. Ela tira uma carta. Baralho velho e viscoso. Luz de velas.

A carta tem o número 10. Lâminas entrelaçadas.

- Dez de espadas – exclama Lúcia.

- Ruína – diz a voz rouca da Velha. Olhos vazios. As sobrancelhas gritam.

- Ruína? – pergunta Lúcia. Ela ouve um barulho. Espécie de “bip”. Longe.

- A carta é o rei da ruína. Desesperança, perda, dor.

- Mas...

- Naipe de espadas é elemento ar, pensamento, razão, consciência. Respiro e sopro. Nascimento e morte. A décima casa é o fim de uma viagem.

- Não tem saída para mim, então?

- Essa é a saída. Tudo vai ruindo. E cai também a prisão que você construiu para se guardar. Cercada de espadas. Idéias afiadas que cortam você. Não lute contra elas. Isso só machuca.

- Como?

- Deixe o medo vir – riu a bruxa estridente.

- Mas eu não dou conta.

- Eeeechhhhh – gritou a Velha Aurora – use a espada.


(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)


quinta-feira, 20 de novembro de 2008

INCONSCIÊNCIAS 15



Números




(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)


Lúcia dormiu e sonhou enquanto todas as luzes do circo pareciam acesas lá fora e todas as possibilidades de contato impossíveis para ela e para o mundo inteiro e nada nada nada nada nada nada poderia ser feito ou dito ou pensado ou tentado ou ignorado ou omitido ou achado ou perdido que pudesse aliviar aquele sentimento de derrota e de falência e de perda e de incapacidade e de insatisfação e de insuficiência e de falta e de ausência e de total fraqueza diante do desafio que era vencer seus próprios medos e encarar de frente todos os riscos que a vida lhe propunha no que dizia respeito à paixão e ao desejo e ao amor sendo que isso ganhava tanto mais força quanto maior era essa paixão e esse desejo e esse amor e ela sentia que o tempo passava e as dores em seu ventre se acendiam em brasa quanto mais próxima ela estava de Dorival e aquilo a devorava por dentro e iniciava um processo interno de discussão contínuo dela consigo mesma onde cada lado defendia um ponto de vista e ela sofria com essa briga que a ia partindo em duas como se outra faca a cortasse devagar e dolorosamente e a fizesse lembrar mais uma vez do que lhe tinha acontecido antes de se juntar ao circo e a fazia maldizer cada momento ruim que havia passado na época e a fazia rogar ao universo que levasse embora aquelas memórias e também a fazia perguntar-se porque ela e porque aquilo e porque tanto e se isso nunca mais acabaria e se ela viveria assim até o fim de sua vida limpando o chão do picadeiro do circo e ouvindo aplausos e risadas e sem saber o que seria subir no palco e executar aquele que seria o seu próprio número dentro do grande espetáculo...


(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

INTERMEZZO 7


Casca de Noz


Visitei o site da Armazém Companhia de Teatro. Companhia cujo trabalho eu acompanho e gosto muito. Fiquei bem feliz de ver que uma crítica que eu escrevi em 2004 no Jornal de Londrina foi escolhida para figurar no site. Está lá. Ao lado de críticas de O Globo, JB e Tribuna da Imprensa. O pequeno e fantástico Jornal de Londrina. (Saudade).

Ah, a crítica de O Globo é de Bárbara Heliodora. Olha só.

A peça é Casca de Noz, que empresta o título de Shakespeare (Hamlet), inspiração de Italo Calvino (Cosmicômicas) e tem um incrível texto de Maurício Arruda Mendonça. Uma peça que realmente eu gostei muito de ver. Daquelas que ficam na memória para sempre.


INCONSCIÊNCIAS 14


Contornos




(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)

Lúcia bate na porta. Ansiedade. É a primeira vez no trailer de Dorival. Um jantar. Disse ele. Olha lá. Disse ela.

Dorival abre a porta. Lúcia suspira e sobe. A escada é curta. Três degraus. Não há mais tempo para pensar. Pensa ela.

Ele sorri. Ela fica feliz. Um abraço forte. Tranqüilo. Um beijo longo. Doce. Como isso é bom. Suspira ela.

Então ele começa. Orgulhoso. Mostra a coleção. Na mesa. Nas paredes. Nas caixas. Em todo lugar. Sorri ele.

Adagas. Espadas. Cimitarras. Katanas. Punhais. Tesouras. Navalhas. Canivetes. Facas. Facões. Facalhões. Facalhazes.

Numa caixa, a frase: “não me uses sem motivo, não me guardes sem honra”.

Lúcia fica tonta. Tenta resistir. O estômago embrulha. Falta de ar. Imagens terríveis retornam. Pavor. Desiste ela.

Dorival olha. Pede que ela volte. Não entende. Ela corre. A porta bate. O silêncio fica. Não posso. Grita ela.

(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)

terça-feira, 18 de novembro de 2008

INCONSCIÊNCIAS 13



Fogueiras



(Continuação da série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)

Noite de São João. Depois do espetáculo. O circo dança. É festa.


Os músicos tocam. Helvécio, rapaz tatuado que ergue lonas, canta. Voz suave. Vicente Celestino.


Dançam as bailarinas gêmeas Luna e Stela. Dançam os três palhaços Primeiro, Segundo e Terceiro. Diana, a mulher barbada, dança com Santelmo, o equilibrista. O Grande Abelardo dança com sua nova assistente Olívia. O domador de leões Rigoberto dança com o chimpanzé Lolô. E todos dançam com Lúcia. Que dança. Só.


Dorival, o atirador de facas, procura Lúcia com os olhos. Ela tenta dançar com eles para longe. Seus pés lhe traem. Os olhos se encontram. E falam. E dançam juntos.


Atrás da barraca de tiro ao alvo. Beijo. Música de realejo. Fogos de artifício. Macio. Molhado. Quente. Doce.


Tão perto. Encaixe perfeito. Lúcia não quer que acabe nunca mais. É tarde.


Tarde?


(Continua na série de posts “INCONSCIÊNCIAS”)